quarta-feira, 25 de julho de 2012

SER POETA E TRIPEIRO



SER POETA E TRIPEIRO

É perceber o que dizem as ondas do mar
É responder ao pássaro que nos vem acordar
É olhar as nuvens que correm no céu
É saber em qual delas o sol se escondeu.

É perceber o silêncio da saudade
É responder com um sorriso de amizade
É olhar a lágrima que corre no rosto
É saber, nos lábios,qual é o seu gosto

É pôr no papel tudo o que se sente
É conseguir mudar a verdade que mente
É acreditar que é bom tudo á nossa volta
É fazer poemas com letras de revolta

É ser cinza como o granito
É ter olhos cor de esperança
É chorar o meu PORTO e achá-lo bonito
É correr nas ruas como se fosse criança

É ver o DOURO morrer na FOZ
E transformar o seu grito
NA Nossa Própria Voz.

Lourdes dos Anjos in NOBRE POVO
 
Declamado por Duarte Lima

GRITO

GRITO 

eu quero poder gritar
gritar sempre gritar alto
eu quero gritar um grito 

grito forte grito agudo grito longo grito ardente 

poder gritar eu quero
e ouvir o eco do meu grito em ti
eu quero gritar um grito 

grito-amor grito-vida grito-sangue grito-alma 

eu quero dizer-te em grito estas entranhas
que não vês e que não ouves
que o meu grito é invisível e mudo
mas aquece e queima e funde
eu quero gritar um grito 

grito-fogo grito-chama grito-luz grito-silêncio 

se puder gritar bem alto
e tu escutares o meu grito
eu viverei a vida inteira nesse instante
eu serei feliz 

eu quero gritar-te o grito

grito forte grito agudo grito longo grito ardente
grito-amor grito-vida grito-sangue grito-alma
grito-fogo grito-chama grito-luz 

que o meu silêncio seja o grito


in “Vento na Alma”
Miguel Leitão 

Declamado por Irene Lamolinairie

A Senhora de Brabante


A Senhora de Brabante


Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.
N'uma cadeira d'espaldar dourado,
escuta os galanteios dos barões.
- É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.
Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de jóias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: - aos toques dos clarins.
Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...
Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.
Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo...
Dizem mais, que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes...
Satã cantara as suas tranças pretas,
- e os seus olhos mais fundos que as raízes!
Mas a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...
O que é certo é que a pálida Senhora,
a transcendente Dama de Brabante,
tem um filho horroroso... e de quem cora
o pai, no escuro, passeando errante.
É um filho horroroso e jamais visto! -
Raquítico, enfezado, excepcional,
todo disforme, excêntrico, malquisto,
- pelos de fera, e uivos de animal!


Parece irmão dos cerdos ou dos ursos,
aborto e horror da brava Natureza...
- Em vão tentam barões, com mil discursos,
desenrugar a fronte da Duquesa.
Sempre a Duquesa é triste. - Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...
Ora o monstro morreu. - Pelas arcadas
do palácio retinem festas, hinos.
Riem nobres, vilões, pelas estradas.
O próprio pai se ri, ouvindo os sinos...
Riem-se os monges pelo claustro antigo.
Riem vilões trigueiros das charruas.
Riem-se os padres, junto ao seu jazigo.
Riem-se nobres e peões nas ruas.
Riem aias, barões, erguendo os braços.
Riem, nos pátios, os truões também.
Passeia o duque, rindo, nos terraços.
- Só chora o monstro, em alto choro, a mãe!..
Só, sobre o esquife do disforme morto,
chora, sem trégua, a mísera mulher.
Chama os nomes mais ternos ao aborto...
- Mesmo assim feio, a triste mãe o quer!


Só ela chora pelo morto!.. A mágoa
lhe arranca gritos que ninguém mais deu!
- Ao luar, sobre os tanques chora a água...
- Cantando, os rouxinóis lembram o céu...


- em Claridades do Sul de Gomes Leal

 
declamado por Fernanda Cardoso

Porto Triste e Marginal


Porto Triste e Marginal

A minha cidade está mais pobre
Mais só, mais triste, mais vazia
E tu, e eu e todos nós somos culpados
Todos somos cúmplices, quem diria!
Sabem onde adormeceram os leões alados
Enquanto revolviam a cidade de lés a lés?
No velho Matadouro do Porto, abandonados,
De asas partidas de tantos pontapés.
Repararam-se depois. O Povo pagou
Com os impostos que alguém nos roubou.
E o soldado da Praça de Carlos Alberto?
Sem coroa de louros, sem arma de guerra!...
É esta a minha, a nossa terra?


Finalmente, um golpe de mestria
Roubaram e retalharam a ANJA. Quem diria?
Filha de José Rodrigues. Morava em frente da Cordoaria.
Ontem foi Mercado do Anjo. Hoje, Praça da Capital
Zona nobre da Cidade. Ninho de vida marginal.
Quase acabava “cremada” numa reles fundição
Vendida sem glória, sem plausível razão
Por cento e dezassete euros…dinheiro vil
Escondido, por mãos sujas, em hediondo covil.
 
É este meu Porto desintoxicado de exclusão social
Em tempo breve de qualquer campanha eleitoral
É a cidade abandonada, que apodrece envolta em neblina
Dilacerada por abutres e aves de rapina
Porque te matam, meu Porto?
Que fizeste para tanto te desprezarem?
Oh, Porto, meu Porto, meu berço
Já não há gente capaz de te defender?
Se achares que tal mereço
Não desistas.Não morras sem eu morrer!
 
Lourdes dos Anjos

AQUI E ALI


AQUI E ALI

Aqui estou,
Mas ali,
Pareço estar também.
Não! Tal impossível é,
Se aqui fiquei,
E daqui não saí.
E se afinal,
Um só corpo tenho!
E se o meu corpo,
Crescer, crescer,
Em dois se tornar,
E em toda a parte ficar?
Como tal ser pode?
Com toda a intensidade,
Alma feminina minha,
Vibrações masculinas outras,
Em todos as dimensões estou,
Aqui! Ali!
Para cima falando,
Para baixo andando,
Para os lados voando,
Com a divina bênção,
Em todo o lado estou!
Mesmo em confusas situações,
Para todo o sempre,
Nesta vida,
Vidas outras,
Dimensões várias,
Tudo e nada me pertence.
Oh, corpo meu,
Que formas sempre varias.
Alma minha,
Que a mesma sempre és,
Como evoluir sempre vais,
De vários conhecimentos,
Impregnada num todo formado,
Expandida, forte e iluminada,
Este mundo invades.
Na planetária massa contribuindo,
Em diferentes meios e modos,
Aqui! Ali!
Ao passo de uma consciência universal,
Tudo és!
Tal como eletrões e protões vários,
Células unidas,
Corpos, formas fazem.
Do mesmo transplantário material,
Consciência do corpo,
Bem me trato,
Evolui pois alma minha,
A mim própria transcendendo,
Muito mais sou eu,
Do que algum dia pensava.
Para além do que cremos,
Todos, muito mais somos,
Do que vemos, para além,
Infinitamente.

Cristina Maya Caetano

Cântico Negro

Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
José Régio

Declamado por Maria Teresa Nicho

Carta para o Céu


Carta para o Céu 

O endereço que o José Hermano Saraiva nos deixou
Todos sabemos que te vai encontrar. 

É uma morada certa e perpétua,
A ti, caro Pedro, te dizemos que vais gostar dele.
É um homem singular;
Na alegria de viver e de comunicação simples,
Fazia a beleza da Vida. 

Por isso mereceu passar à outra,
Transparente, brilhante e simbólica. 

Peço-te que o aceites, como nós o vimos por aqui,
Olhando o céu enquanto pisava no caminho
Crisântemos para dar expressão à dor da despedida. 

Quando acontecer... fatalidade;
Guarda-nos o lugar junto do nosso irmão.
Queremos estar juncos de novo.
Não pela amizade que nos transmitia,
Tão pouco só pela alegria,
Mas por tudo de bom que possuía. 

E possuía tanto, que contaminados ficamos: 

Por isso merecemos o nosso pedido,
Dai-nos lugar junto dele
Quando for a vez da Eternidade!



Luis Pedro Viana

Sorriso Fechado

Hoje não trago o sorriso à janela
Ficou fechado muito quietinho
À espera que alguém o veja através dos olhos
Que de tão abertos teimam em ver coisas bonitas
Onde há dor
Hoje não trago o sorriso à janela
Quero fingir que estou triste
Quando por dentro ardo de amor por ti

Celestina Silva, in Coletânea Galeria Vieira Portuense
declamado por Maria Augusta da Silva Neves


Um pouco da vida e obra de Miguel Hernandez

Um querer tenho por teu acerto
uma apetência por tua companhia
e uma dolência de melancolia
pela ausência do ar e do teu vento 
Paciência necessita o meu tormento
urgência da tua graça enamorada
tua clemência solar no dia enregelado
tua assistência à ferida que acrescento 
Ai!  querência , dolência e apetência
 substanciais beijos , meu sustento
tanta falta me faz e morro sobre Maio 
Quero que venhas flor, na tua ausência
para serenar esta dor do pensamento
que desagua em mim o eterno raio

Fernando Morais

Erros meus, má fortuna, amor ardente


Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

                        Luís de Camões

Adolfo Castelo Branco

Monumento

Monumento 
Puseram a bandeira a meia haste
E decretaram luto na cidade
Responsos, coroas, círios – qt. baste
Para iludir a eternidade. 
Teve o nome nas ruas, em monumentos:
“Nasceu – morreu – tantos de tal – poeta”
Houve discursos graves, longos, lentes…
 - Venham todos os ventos do Planeta! 
Rasguem bandeiras, seguem flores; no céu
Se percam orações, paters e glórias
(Tudo isso é dor que não lhe pertenceu!);
Destruam as estátuas e as memórias;
Que os discursos inúteis vão dispersos… 
 - A homenagem a um Poeta que morreu
É decorar-lhe os versos!
Maria Antónia Ribeiro

Emporté par le vent

Emporté par le vent,
Mon esprit plane
Parmi d'autres
Dons le Cosmos,
Dans le bonheur
Dans Ia souffrance.
Je pénètre dans un trou noir
bons le néant
Sons espoir,
Mais...
Je ressors vivant
Avec des idées noires
Qui me traversent cerveaux
Et, compliquent mon existence,
Dans ce monde
Qui nous appelons Terre.
Ce monde
Compiètement traumatisé
Par ces guerres sons fin,
Qui ne finissent jamais.
Ce tas d'ordures,
 Ce tas de merde,
Ce tos d'excréments.
Ces idéologies pourries
Complètement défasers
Ces pitres
Ces pantins,
Ces idiots,
Ces chiens galeux
Sons cosur,
Sons ame,
Dons leurs têtes
Pourries par tant d'haine.
Comme des lumes tranchantes
Qui coupent, même les diamants.
Ces coeurs de pierre,
Ces têtes d'acier
Qui voient le mal
Se planifier.
César Carvalho

LIVRO ABERTO

LIVRO ABERTO 
Não sou mais que o livro aberto
da memória
e em que o tempo anotou
os dados da minha vida,
e com eles articulou
uma história
— a história daquilo que sou
e como cheguei até aqui,
as experiências que vivi,
aquilo por que passei,
os muitos lugares que vi,
e as pessoas que amei... 
Não contém só o passado,
o meu livro,
mas o presente também,
e conceitos alargados,
bem precisos,
bem maduros,
que me servem para equacionar
alguns projetos de vida
e saber o que fazer
com os meus dias futuros. 
A memória é o meu mundo
em que posso mergulhar
mais à tona,
ou lá no fundo,
e tentar descortinar
situações e episódios
que eu próprio desconheço,
vividos por uma pessoa
com a qual me não pareço. 
Com tais cenas me admiro
e me interrogo:
— Como é que foi possível
que aquilo acontecesse?
Foi como se outro viesse
e tomasse o meu lugar
na história,
e fosse eu que aparecesse
com auréola de glória!
Sim, um resplendor bem brilhante
para me fazer esquecer
e ultrapassar,
em cada instante,
coisas que devem constar
das páginas sujas da memória,
que as há
e que eu disfarço bem,
e que não desejo mostrar
a ninguém!

Miguel Leitão

NA LOJA CHINESA DE GUEIFÃES


NA LOJA CHINESA DE GUEIFÃES 

Vieram eles, da China
Fazer em Portugal
O que fazem no seu país...
Que não é nada feliz
Na dita loja do Luís. 

Desconfiados que são
Que quem entrar na loja
Eles atrás vão
Alegam como soluções...
Os portugueses ser ladrões. 

Dizem o que eles são
Sempre que procuram alguém
Para com eles trabalhar,
Que fazem para nada pagar. 

Colocam o anúncio na porta
E durante alguns dias
Lá tem uma empregada...
E fazem-lhe a vida negra
Que nunca mais aparece
E lá fica trabalho feito
Sem tão pouco pagar nada. 

Até o salário mínimo nacional
Com eles nunca dá certo
Tal como o horário,
Que o trabalho é um calvário 

Dez horas; pelo menos exigem
E não há horas, para almoço
Só quem lá trabalha acredita...
E sofre um grande desgosto

Almoçar no gabinete de prova
Ou vai para a casa de banho
E a mesa, é, o assento da sanita. 

E concluído, o horário
Os pertences de quem trabalha
Que na casa de banho estão...
Junto a um micro-ondas
Só lá vai, a patroa, ou o patrão. 

A empregada, não pode entrar
Após da loja sair
Os pertences dela estão,
Espalhados no balcão. 
Para assim, ter a certeza
Que sai, mas nada roubou
É uma grande tristeza...
Que nunca para ninguém
Nesta dita loja chinesa. 

José Oliveira Ribeiro

terça-feira, 24 de julho de 2012

A minha Rua


A minha Rua

Vou falar-vos de uma amiga tão irmã
que nos confundimos uma na outra
A história que me contou dentro das quatro paredes
redondas como uma lágrima e densas
como a solidão de uma cama vazia
Era uma vez uma menina
pobrezinha mesmo, surdinha mesmo
não nasceu como nascem as outras meninas
não foi nem o Espírito Santo
nem nasceu numa manjedoura
nem veio no bico dourado da cegonha
nem veio da terra dos Franceses
nem veio da roda de caridade
nem veio de dentro de uma abóbora
nem sequer de uma folha de couve
e para cúmulo nem pai tinha
era apenas filha da mãe e bastava
Ela foi assim botada na vida
assim tão sem jeito de contar
a modos que nasceu e viveu dentro de si
E tornou a nascer, a crescer e a viver
...e vai morrendo assim devagarinho... 

Falou do Porto velho e sujo
jardim das criadas e magalas e manguelas
rufias e velhos senis
prostitutas, proxenetas e maricas
onde as obres crianças pobres
brincavam ao Ana-ina-não-ficas tu eu não
mas ela ficava sempre e tiravam a sorte à sorte
E a sonhar fugia para o lago e com os patos
repartia o pão cantava e chorava
as penas dos patos as nossas penas
Jardim da Cordoaria
jardim dos meninos sem jardim
dos meninos velhos e sem infância
sem janelas, sem sol, sem estrelas
Ao ver os pássaros voar chorava
por não poder voar ir pelo céu adentro
ir até às estrelas voar voar...
e onde houvesse jardins com crianças, mas crianças mesmo
o importante era ir e não ficar ali esquecida
Bom- barqueiro-bom-barqueiro
Deixai-me passar tenho filhos pequeninos não os posso criar
Passarás-- passarás mas algum há-de ficar
Se não for o da frente há-de ser o de trás
Santa mãe que estás no céu oh mãe
pede a Deus pelos teus filhinhos sim
por causa da minha madrasta que da cabo de mim
e o ceguinho com a menina a cantar as cantigas de cordel
estórias de faca e alguidar de arrepiar.
E o velho coreto onde a banda tocava música ao longe
e dizia: Sabes o que é viver no meu Porto?
não no Porto dos outros mas no meu Porto
com as suas noites cheias de sombras e de história
E das sombras profundas nos olhos do Sr. José
o barbeiro "poeta" lá da rua
e a paixão por uma menina rica
que estava sempre escondida pela cortina (ainda lá está)
A batateira sempre a espantar a canalha espantada
Carlinhos da Sé atarefado de cesta no braço
a vender lindos aventais dava-me lindos retalhinhos
para fazer a roupa das bonecas de trapos
Era perseguido e arreliado pela canalha (e julgava eu que o protegia)
e gostávamos um do outro, uma piscadela de olho.
Soldado desconhecido hirto tão frio e o passarinho
cuidei dele... teve por caixão uma velha caixa dos sapatos
dos meus velhos sapatos de ver a Deus
Ah-ah-ah minha machadinha
Ah-ah-ah minha machadinha
Quem te pôs a mão sabendo que és minha. 

Praça dos Leões sempre cheia de estudantes
Leões Alados, onde estão as vossas asas.
As vossas capas negras! Vocês eram a força! O saber! O futuro!
E sabia ela as suas limitações
...e sabemos nós as nossas frustrações
e gritou: "porque foi que toda a ignorância se alojou em nos?
Leões Alados vós sabeis parque!"
Bazar do três vinténs
"o burro vai a feira por três vinténs"
maravilhoso mundo infantil
das crianças-bem-na-vida
das crianças-Família
mas não do seu mundo
não do Porto que ela viveu
"Lembras-te daquele narizito
colado aos vidros das montras?
Por ironia, continua de nariz colado, achatado
e que chato, já o sinto chato
e é chato ver a vida a correr além do vidro"
- "Amiga! Tens razão eu tenho o nariz chato."
- "Fui ao S. João, à Lapa, ai da Lapa
fui ao Bonfim -- estava lindo, enfeitado
ai com bandeirinhas de cetim.
E alho-porro Sra. Comadre
Vá dar o alho a quem você sabe
Do S.João com alho-porro,
erva cidreira e cravos vermelhos,
o doce da Teixeira, a regueifa quentinha
o cabrito a assar na padaria e a sardinha fresca a assar nas Fontaínhas
O Notícias a sair quentinho com as quadras S. Joaninas
- Oh Sr. Polícia cheire o meu alho - "Porra" -- foge rapariga
que se t'apanho nico-tel
e os balões a pontear o céu
"balão cai, cai na quinta do teu pai..."
e as cascatas com os santinhos
dos santeiros de Gaia
enfeitados com pratinhas
e papeizinhos de rebuçados
- "Era tão linda a minha cascata brilhante de todas as cores"
_ Oh meu 'Sinhore' dê-me um tostãozinho 'pró' S. João
Oh minha linda menina mas o S. João também come?
Oh carago é p'ra cascata! "Toma lá 5 tostôes"
 _ Ei! Que festa aquela e lá dividíamos
nem sempre tão irmãmente como isso
"Sou primas... Sou sigas... Sou trigas"
e a correr, lá íamos comprar 5 tostões de Victórias...
é pá, já tens o bacalhau?
e o cabrito e a cobaia? Oh que azar 

"S. João, p'ra ver as moças,
fez uma fonte de prata,
mas as moças não vão à fonte,
e S. João todo se mata." 

Igrejas do Carmo, São Bento, Congregados
Onde mulheres gastas cor das pedras
Crianças velhas por viver
"Olha o Notícias, Janeiro e Comércio!"
Meninas, mulheres cheias de barriga até aos dentes
Cheias até à ponta dos cabelos incertos
Cheias de fome e de filhos com fome
" Oh 'home' deixas-me p'raqui botada `assinhe'
0 seu homem tinha morrido estrubeculoso -- "num báz home"
Oh 'qrida' leve-me um raminho de 'bioletas'
Vendiam atacadores, pentes -- quem quer? Quem quer?
Esticadores 'pós' colarinhos -- quem quer?
Com os seus pregões feitos gemidos -- quem quer? (e ninguém queria)
Tim-tim-tim-tim
Havia o carro eléctrico, era amarelo, amarelinho
Bancos de palhinha e era amarelinho
Srs. Passageiros chegar a frente por favor
E eram encontrões, apalpões, olha o filho da que me … que me apalpou o cú
E o mar lá estava a perseguir-me e eu a ele ...e ele para mim
E já havia mar e sal e pedras e o mar lá estava
Era tão bom ir até lá longe, até a foz ver o mar 

"O mar enrola na areia
Ninguém sabe o que ele diz" 

O Palácio de Cristal (agora feito um espremedor)
Ir lá era dia de festa, ver os cisnes no lago, flores, animais mas presos
Comer a língua da sogra, barquilhos
Um sorvete de dois tostões do feitio do meu sonho
A fava rica, camarinhas, tremoços
Pirolitos e... com a bolinha jogava ao berlinde
Sou primas, sou sigas, sou trigas!
E com gritos na voz calada diz a minha amiga:
"o mais difícil é falar da minha rua, por pudor
Par vergonha ou receio de te chocar
Tu não me reconheces na minha rua prisão
Rua fria rua feia rua sombria
Rua de ódios, de raiva funda
Calada bem dentro de mim
Rua das vidas mal vividas
Rua sem calor nas almas feitas de pedras
Olha-me bem de frente, reconheces-me?
Olhem-me bem de frente, reconhecem-me?
A minha rua suja e pobre
Rua de pouca gente boa sem história
Rua dos obscuros sentidos
Rua sempre molhada escorregadia
Rua da cadeia, das cadeias sem elos que nos ligam a vida
Rua dos amantes, do amor por tabela
Rua do amor alugado no vão de uma escada
Rua do amor alugado nos sexos apodrecidos
Rua do desamor, rua do ciúme
Rua dos cães sem dono e sem coleira
Rua dos mendigos esperando as sopas
Rua das esperas nas esquinas
Rua da cadeia sem cadeias que nos liguem a vida 

Amiga sou o que resta dessa rua sem sol
Da casa sem janelas
Sem nada"

A Rua dela era assim

Aurora Gaia

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Navio De Espelhos


O Navio De Espelhos

O navio de espelhos
não navega cavalga
Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível
Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos
Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele
Os armadores não amam
a sua rota clara
(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)
Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga
O seu porão traz nada
nada leva à partida
Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta
(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)
Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto
A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto
Quando um se revolta
há dez mil insurrectos
(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)
E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escuta o mar do fundo
Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)
Do princípio do mundo
até ao fim do mundo

Mario Cesariny
declamado por António Manuel

domingo, 22 de julho de 2012

A MINHA PISTOLA


A MINHA PISTOLA

(comprei hoje, entusiasmado,
uma pistola de pintura)

Na minha rica pistola
De tudo o que mais me encanta,
É que através de uma mola
Se possa pintar a manta…

Pintar assim é que é giro!
Não há mancha ou borradela...
E é por isso que prefiro
Pintar as coisas com ela...

A tinta sai forte e rija
Toda desfeita em poeira,
A modos como quem mija
Através de uma peneira!...
in "Gazetilhas" de Jaime de Miranda
Declamada por Fernanda Garcias

PLANO DE EXPLORAÇÃO DOS CONTRIBUINTES

P. E. C. 5

PLANO DE EXPLORAÇÃO DOS CONTRIBUINTES

As armas dos varrões assinalados
Líderes, deste país, autoproclamados,
Estão, finalmente, à vista de todos
- Portugueses ou aportuguesados
Sob comando de novos visigodos!

A ditadura, esgotou.
A democracia, chegou.
Dá-se vivas à liberdade
Sem que se veja, de verdade...

Salazar morreu na miséria,
Mas era uma pessoa séria,
Deixou ouro aos milhões
Comido, agora, pelos mamões...

Chegou, agora, um Coelho...
O Zeca foi embora...
Chegaram os PEC com ele
Estripando quem cá mora...

- E o que é o PEC?

Plano de Exploração dos Contribuintes

E, porque explorado, não sou já Português...
Serei um eterno farrapeiro...

- Crescem-me as unhas...
Falece-me o dinheiro...

Manoel do Marco