quarta-feira, 24 de outubro de 2012

in “Porto, Modo de Dizer” António Pina

5.
Amei muitas cidades ao longo de muitos e incertos anos. Em tardios quartos de hotel, indistintas estações de Metro, ruas intermináveis, encontrei e perdi cidades. O meu coração está cheio de reflexos de vidraças, de neves desfeitas, de rostos, de rumores; passaram por mim brevemente mármores e jardins, céus e tempestades. Deixei em aeroportos, em comboios, em bares, em urinóis, objectos obscuros e memórias indecifráveis. Falei demais, faltei a encontros, comprei e não parei. E parti, algumas vezes olhando, sem querer, para trás, mais pequeno e mais pobre do que quando chegara. 
Mas em nenhum outro lugar senão neste poderia morrer. E nenhum outro, quando eu morrer, morrerá comigo.
 
6.
Cafés do Carmo, sórdidos subúrbios, domingos, o último eléctrico da madrugada recolhendo pesadamente à Boavista; um certo plátano de um certo jardim; dois ou três nomes, um de mulher (Marianne); um quarto clandestino; um amigo preso, outro morto para sempre; o Verão; as filhas crescendo fora de mim; uma mala com livros; uma cava cheia de homens e de perguntas e uma noite interminável; um poema de amor; Eliot, Rilke, Eugénio de Andrade; o vizinho enforcado na macieira; um naufrágio; dias de horror, de aflição; insónias, lágrimas; um sítio onde havia uma casa; uma doença de pele, uma traição; perdição, exaltação, melancolia; e fumo, e água, e pedra, e todas as coisas que não posso dizer. Uma cidade é mais do que ruas, casas, pessoas. Provavelmente todas as cidades o são; mas só esta me pertence deste modo. 

Manuel António Pina
in “Porto, Modo de Dizer”
lido por Lourdes dos Anjos

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