terça-feira, 24 de julho de 2012

A minha Rua


A minha Rua

Vou falar-vos de uma amiga tão irmã
que nos confundimos uma na outra
A história que me contou dentro das quatro paredes
redondas como uma lágrima e densas
como a solidão de uma cama vazia
Era uma vez uma menina
pobrezinha mesmo, surdinha mesmo
não nasceu como nascem as outras meninas
não foi nem o Espírito Santo
nem nasceu numa manjedoura
nem veio no bico dourado da cegonha
nem veio da terra dos Franceses
nem veio da roda de caridade
nem veio de dentro de uma abóbora
nem sequer de uma folha de couve
e para cúmulo nem pai tinha
era apenas filha da mãe e bastava
Ela foi assim botada na vida
assim tão sem jeito de contar
a modos que nasceu e viveu dentro de si
E tornou a nascer, a crescer e a viver
...e vai morrendo assim devagarinho... 

Falou do Porto velho e sujo
jardim das criadas e magalas e manguelas
rufias e velhos senis
prostitutas, proxenetas e maricas
onde as obres crianças pobres
brincavam ao Ana-ina-não-ficas tu eu não
mas ela ficava sempre e tiravam a sorte à sorte
E a sonhar fugia para o lago e com os patos
repartia o pão cantava e chorava
as penas dos patos as nossas penas
Jardim da Cordoaria
jardim dos meninos sem jardim
dos meninos velhos e sem infância
sem janelas, sem sol, sem estrelas
Ao ver os pássaros voar chorava
por não poder voar ir pelo céu adentro
ir até às estrelas voar voar...
e onde houvesse jardins com crianças, mas crianças mesmo
o importante era ir e não ficar ali esquecida
Bom- barqueiro-bom-barqueiro
Deixai-me passar tenho filhos pequeninos não os posso criar
Passarás-- passarás mas algum há-de ficar
Se não for o da frente há-de ser o de trás
Santa mãe que estás no céu oh mãe
pede a Deus pelos teus filhinhos sim
por causa da minha madrasta que da cabo de mim
e o ceguinho com a menina a cantar as cantigas de cordel
estórias de faca e alguidar de arrepiar.
E o velho coreto onde a banda tocava música ao longe
e dizia: Sabes o que é viver no meu Porto?
não no Porto dos outros mas no meu Porto
com as suas noites cheias de sombras e de história
E das sombras profundas nos olhos do Sr. José
o barbeiro "poeta" lá da rua
e a paixão por uma menina rica
que estava sempre escondida pela cortina (ainda lá está)
A batateira sempre a espantar a canalha espantada
Carlinhos da Sé atarefado de cesta no braço
a vender lindos aventais dava-me lindos retalhinhos
para fazer a roupa das bonecas de trapos
Era perseguido e arreliado pela canalha (e julgava eu que o protegia)
e gostávamos um do outro, uma piscadela de olho.
Soldado desconhecido hirto tão frio e o passarinho
cuidei dele... teve por caixão uma velha caixa dos sapatos
dos meus velhos sapatos de ver a Deus
Ah-ah-ah minha machadinha
Ah-ah-ah minha machadinha
Quem te pôs a mão sabendo que és minha. 

Praça dos Leões sempre cheia de estudantes
Leões Alados, onde estão as vossas asas.
As vossas capas negras! Vocês eram a força! O saber! O futuro!
E sabia ela as suas limitações
...e sabemos nós as nossas frustrações
e gritou: "porque foi que toda a ignorância se alojou em nos?
Leões Alados vós sabeis parque!"
Bazar do três vinténs
"o burro vai a feira por três vinténs"
maravilhoso mundo infantil
das crianças-bem-na-vida
das crianças-Família
mas não do seu mundo
não do Porto que ela viveu
"Lembras-te daquele narizito
colado aos vidros das montras?
Por ironia, continua de nariz colado, achatado
e que chato, já o sinto chato
e é chato ver a vida a correr além do vidro"
- "Amiga! Tens razão eu tenho o nariz chato."
- "Fui ao S. João, à Lapa, ai da Lapa
fui ao Bonfim -- estava lindo, enfeitado
ai com bandeirinhas de cetim.
E alho-porro Sra. Comadre
Vá dar o alho a quem você sabe
Do S.João com alho-porro,
erva cidreira e cravos vermelhos,
o doce da Teixeira, a regueifa quentinha
o cabrito a assar na padaria e a sardinha fresca a assar nas Fontaínhas
O Notícias a sair quentinho com as quadras S. Joaninas
- Oh Sr. Polícia cheire o meu alho - "Porra" -- foge rapariga
que se t'apanho nico-tel
e os balões a pontear o céu
"balão cai, cai na quinta do teu pai..."
e as cascatas com os santinhos
dos santeiros de Gaia
enfeitados com pratinhas
e papeizinhos de rebuçados
- "Era tão linda a minha cascata brilhante de todas as cores"
_ Oh meu 'Sinhore' dê-me um tostãozinho 'pró' S. João
Oh minha linda menina mas o S. João também come?
Oh carago é p'ra cascata! "Toma lá 5 tostôes"
 _ Ei! Que festa aquela e lá dividíamos
nem sempre tão irmãmente como isso
"Sou primas... Sou sigas... Sou trigas"
e a correr, lá íamos comprar 5 tostões de Victórias...
é pá, já tens o bacalhau?
e o cabrito e a cobaia? Oh que azar 

"S. João, p'ra ver as moças,
fez uma fonte de prata,
mas as moças não vão à fonte,
e S. João todo se mata." 

Igrejas do Carmo, São Bento, Congregados
Onde mulheres gastas cor das pedras
Crianças velhas por viver
"Olha o Notícias, Janeiro e Comércio!"
Meninas, mulheres cheias de barriga até aos dentes
Cheias até à ponta dos cabelos incertos
Cheias de fome e de filhos com fome
" Oh 'home' deixas-me p'raqui botada `assinhe'
0 seu homem tinha morrido estrubeculoso -- "num báz home"
Oh 'qrida' leve-me um raminho de 'bioletas'
Vendiam atacadores, pentes -- quem quer? Quem quer?
Esticadores 'pós' colarinhos -- quem quer?
Com os seus pregões feitos gemidos -- quem quer? (e ninguém queria)
Tim-tim-tim-tim
Havia o carro eléctrico, era amarelo, amarelinho
Bancos de palhinha e era amarelinho
Srs. Passageiros chegar a frente por favor
E eram encontrões, apalpões, olha o filho da que me … que me apalpou o cú
E o mar lá estava a perseguir-me e eu a ele ...e ele para mim
E já havia mar e sal e pedras e o mar lá estava
Era tão bom ir até lá longe, até a foz ver o mar 

"O mar enrola na areia
Ninguém sabe o que ele diz" 

O Palácio de Cristal (agora feito um espremedor)
Ir lá era dia de festa, ver os cisnes no lago, flores, animais mas presos
Comer a língua da sogra, barquilhos
Um sorvete de dois tostões do feitio do meu sonho
A fava rica, camarinhas, tremoços
Pirolitos e... com a bolinha jogava ao berlinde
Sou primas, sou sigas, sou trigas!
E com gritos na voz calada diz a minha amiga:
"o mais difícil é falar da minha rua, por pudor
Par vergonha ou receio de te chocar
Tu não me reconheces na minha rua prisão
Rua fria rua feia rua sombria
Rua de ódios, de raiva funda
Calada bem dentro de mim
Rua das vidas mal vividas
Rua sem calor nas almas feitas de pedras
Olha-me bem de frente, reconheces-me?
Olhem-me bem de frente, reconhecem-me?
A minha rua suja e pobre
Rua de pouca gente boa sem história
Rua dos obscuros sentidos
Rua sempre molhada escorregadia
Rua da cadeia, das cadeias sem elos que nos ligam a vida
Rua dos amantes, do amor por tabela
Rua do amor alugado no vão de uma escada
Rua do amor alugado nos sexos apodrecidos
Rua do desamor, rua do ciúme
Rua dos cães sem dono e sem coleira
Rua dos mendigos esperando as sopas
Rua das esperas nas esquinas
Rua da cadeia sem cadeias que nos liguem a vida 

Amiga sou o que resta dessa rua sem sol
Da casa sem janelas
Sem nada"

A Rua dela era assim

Aurora Gaia

Sem comentários:

Enviar um comentário