quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Estou na manhã do comboio

ALEX DAVICO


Estou na manhã do comboio
que já passou, suavemente desconhecido
e galgando carris de esquecimentos
que jamais vos poderei transmitir: sois capazes de ouvir
o grito de uma rosa?
Passo agora mesmo, aqui
onde não sei ver ninguém e da minha sombra
lembrança alguma restará; dos olhos de quem não esteve
levo a cegueira de um mar que não fui.
Pouca-terra pouca-terra, sou comboio antigo,
um brinquedo sujo em mãos que inventam o menino;
pouca-terra pouca terra, o vapor que transpiro tem o cheiro
das rugas das viagens que não fiz! Pouca-terra pouca-terra,
além vive um monte, a estrada e a esfera, pouca-terra pouca-terra,
há uma frisa que espera, pouca-terra pouca-terra pouca-espera:
áh, o desalento, pouco vento;
silêncio
mudo
pouca terra
pouco tudo!

Adiante, numa curva
a dor sorri: é triste e lindo
o rio aos pedaços, as nuvens nos meus braços
e pouca terra poucos passos: é altura de rasgar o bilhete
para que nunca pare a viagem? Pouca terra pouca aragem
muita dor a vestir a margem!

Pouca-terraaaa, pouca-terrrrraaaaaa, devagarinho
de mansinho, há gente que ainda dorme, pouca terra pouca fome…
Na manhã do comboio, acontece atravessar rios, fios de navalha,
pouca terra pouca palha, pouca-terra pouca-terra, o ruído não atrapalha
e as pontes só caem depois do comboio passar, pouca terra pouca guerra
desejo.
Beijo

Sinto pouca-terra pouca-terra, o gemer da linha
pouca terra pouca minha, descanso a alma
no forno, na caldeira, pouca terra pouca eira;
atravesso a feira, adormeço a esteira, pouca-terra pouca-terra,
algemei a partida, adio a chegada, pouca terra pouco… e nada.

Eh! Eh! Afastem-se!
Vou passar, pouca-terra pouca-terra,
vou passar, pouca terra nenhum mar!

As distâncias que conheceis são gotas d’água
que já não me podem encharcar, pouca-terra pouca-terra,
pouca terra pouco ar: respiro-me.
Sempre que posso. E asfixio a pele que visto
com o desespero que sinto ao ouvir pouca-terra pouca-terra,
pouca terra
aterra
enterra
muito devagarinho pooouuuca-terrrrrrrraaaaaaaaa pooouuuca-
terrrrrrraaaaaaaaa

Para que serve um comboio vazio,
pouca terra pouco rio.
E tanto frio!
Colinas, espinhas, estas viagens
já não são minhas: o bilhete fugiu
antes que o pudesse pagar, pouca-terra pouca-terra,
pouca terra pouco voar.

Estou na manhã do comboio
cujo vento ao passar me oferece um ramo de silêncios;
e é assim que encontro sempre os meus amigos…
pouca terra sempre feridos, pouca-terra pouca-terra,
um dia não é nada, uma manhã é uma vida,
pouca terra pouca vida.

Se eu parar o comboio, se eu o souber parar,
alguém me esquecerá
a chorar…

Luís Nogueira
lido por Eduardo Roseira

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