quinta-feira, 28 de junho de 2012

vivo suspensa


vivo suspensa
nas asas do sonho.
na esperança que se esvai
sinto ser dor prometida
no silêncio do meu amanhecer
de árvore bonsai

Teresa Gonçalves
in “pleno verbo”

UMA ESTÓRIA

UMA ESTÓRIA

Eu amo os pequenos nadas
que displicentemente
transformas em madrugada!
E os nadas são, de repente,
um sentir mais que profundo!
Que força é essa, meu bem,
que me dá tudo no mundo
mesmo o que o mundo não tem?

Se de mim estiveres perto
e a chuva caia lá fora,
todo o céu é céu aberto,
vejo alegria em quem chora!...
Soberba força é a tua,
que mesmo de mim ausente,
vou para ti de alma nua
como quando estás presente!

Querer de arroubos serenos,
mais do que a mim, eu te quero;
se te ausentas fica o menos
e o mais é meu desespero!
Sinto-me ausente daqui…
Meu amor, que força é esta
que mata estando sem ti
e contigo só vivo em festa?

Sou já semente madura
que por ti floresceu;
sou trigo na planura
que deu pão, me transcendeu!...
E por longínquos trilhos,
entre alegrias e medos,
cinco são os nossos filhos
como da mão são os dedos.

          MARIA DE LOURDES MOREIRA MARTINS

DEVAGAR

DEVAGAR

Devagarinho, vamos devagar,
porque esta rua é muito ladeirenta
e as nossas forças másculas rebenta
se nós tivermos pressa de chegar…

Devagarinho! Vamo-nos poupar
como quem poupa o trigo que alimenta,
o azeite que era a antiga luz do lar
e o vinho loiro que nos dessedenta…

Devagarinho! Vamos sabiamente
trepando a encosta agreste e má que a gente
deve esforçar-se sempre por vencer.

Devagarinho! Calmos e a sorrir,
pois quanto mais depressa se subir
quão mais depressa temos que descer…

Oliveira Guerra
in "Algemas"

CEGUEIRA NO AMOR!

CEGUEIRA NO AMOR!

No amor eu sou tão cedo,
que quando meu amor me dá “baile”,
com minhas mãos eu pego
… e começo a ler seu corpo…
em Braille!


Silvino Figueiredo
Figas de Saint Pierre de Lá-Buraque

quinta-feira, 21 de junho de 2012

S. JOÃO

S. JOÃO

Meu santinho popular
Vinte e quatro é só teu
Tua lenda de encantar
Teu dia é jubileu.

Festeja-se em todo o lado
Há sempre muita folia
Por todos idolatrado
A noite é de alegria.

Manjerico arco e balão
Alho porro arruda martelinho
Ó meu rico S. João
Estou há espera de um beijinho.

Fêveras e sardinha assada
Pimentos também pepino
S. João não comes nada
Assim tu ficas franzino.

Toda a gente vem para a rua
Têm vontade de brinca
S. João olha que a lua
Que contigo dançar.

Meu S. João rapioqueiro
Tua festa tem encanto
Rei do Porto tão tripeiro
Veneram-te tu és um santo. 

João Pessanha
2/06/2012

UMA CIDADE

UMA CIDADE

Uma cidade pode ser
apenas um rio, uma torre, uma rua
com varandas de sal e gerânios
de espuma. Pode
ser um cacho
de uvas numa garrafa, uma bandeira
azul e branca, um cavalo
de crinas de algodão, esporas
de água e flancos
de granito.

Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum cais, um porto, um barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso

numa noite
de junho.

Uma cidade pode ser
um coração,
um punho.

Albano Martins
in "Castália e Outros Poemas"
lido por Lourdes dos Anjos

PARA TI

PARA TI

Quero dar-te a flor mais linda
Aquela que desabrochou para ti,
Regada com uma lágrima;
Ou aquela flor branca
Que nunca mais floriu dessa cor!

Se preferires dou-te uma estrela brilhante!
Aquela além, atrás da outra onde te escondes!
Ou então esta pequenina, mas cheia de amor…
Qual queres? Diz-me por favor!

No jardim que para ti plantei
Desfolharam as rosas
Cansadas de esperar…
Anda, senta-te ao meu colo,
Repousa, já te estou a embalar…

Quero dar-te a flor mais linda,
Ou aquela estrela além…
São para ti, ó minha mãe!


Maria Irene Costa
in “Teia de Afectos”

CHOCOLATE

CHOCOLATE

E mais se disse:…, estes quadradinhos de chocolate, os teus pais não os vão lamber e tragar; são para ti, meu amor. Mas haverá o seu tempo, de os lamber e chupar.

“Então porque mos dás, meu maluco?”, disse ela. “Não sabes que já tenho nervo doce, meu amigo?!”, retorquindo. E foi dito: “Sou um rico maluco, contudo não ouvirei o som dos teus Orgasmos; mas promete-me, meu encanto, que no momento das tuas masturbações, diria nas vibrações orgásticas, porta do quarto bem trancada, música aos berros, e saberás então esparramar-te na cama, enquanto chuparás um dos tais quadradinhos de chocolate, meu amor. E será doce, o teu climax!”.



V. L.

ESTA GENTE

ESTA GENTE

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Conta o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E dum tempo justo 

Sophia de Mello Breyner
lido por Alzira Santos

RIMANÇO DO PAÍS DAS UVAS

RIMANÇO DO PAÍS DAS UVAS

D. Mello e Mello e mais Mello
deu dois tiros na coutada.
“- Escapei por um cabelo!”
disse a perdiz desasada.

Dona Chuva miudinha
que caía em telha vã
viu a Bruxa malvadinha
envenenar a maça.

Diz o rei: “- Abaixo o povo!”
Diz o povo: “- Abaixo o rei!”
Lá vem D. Fuas de novo
fazer respeitar a lei.

Traz uma trança comprida,
toda atada em noz moscada.
Grita: “- Antes nós do que nada…
Quem puder que salve a vida!”

E os lobos que andam à solta
toda a noite a dar ao dente
descem da serra e na volta
comem os olhos à gente.

Armandinho vai à tropa
aprender a disparar
para salvara  Europa
de quem a quer devorar.

Com achas de pessegueiro
Julião acende o lume
para pôr no fogareiro
o caldeirão do ciúme

Fecham as portas abertas
os cruzados nas campanhas.
Almoçam a horas certas.
Pagam o bife com senhas.

E as donzelas vão sorrindo
nas janelas da avenida
ao galã Dom Florindo
que já se vai de partida.

“- Porra, porra, meu senhor…”
queixa-se um velho criado.
“Sempre a pedir por favor!
Sempre a dizer obrigado!”

E o amo que usava venda
na vista esquerda, coitado!
vendeu depois a fazenda
os cavalos e o criado.

Mello e Fuas de Roupinho
com cama e roupa lavada
enchem a mula de vinho
e enguias de caldeirada.

E um pobre que passa à porta
pede um pedaço de pão.
Dizem-lhe: “- A coisa está torta.
Não se pode ser patrão!”


Joaquim Pessoa
lido por Maria de Fátima Martins

DESLUMBRAMENTOS

DESLUMBRAMENTOS

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!


lido por Amândio Vasconcelos
in “O Livro de Cesário Verde”

TRIBUTO AO 25 DE ABRIL

TRIBUTO AO 25 DE ABRIL

Nem a chuva tem já força
para te chorar, Abril !
Este tempo de chumbo,
de ignorância política,
de gritos pesados
e de silêncios globais,
não tendo a Pátria meios
para dominar o nojo
que é limpar o cu à Europa,
velha, gorda, doente!
Que tempo é este
que nos esgota
em novos despejos
e incidentes estranhos
com polícias armados!
Há um cheiro bafiento
erguendo - se da tumba do medo
vergando - nos até à chibata!
A Primavera tão fria
não traz o pão para a mesa,
a angústia penetra até ao umbigo,
os erros sucedem-se
fechando o portal da liberdade!
Não,
não cortem as raízes dos sonhos,
não destruam os recursos da esperança,
não desfigurem este país:
facho, luzeiro, lua,
caravela, nau, marinheiro,
mundo novo, mar presente,
namorados ensaiando
um beijo cheio. 


Maria Olinda Sol
lido por Eduardo Roseira

O ÚLTIMO É DE AMOR

O ÚLTIMO É DE AMOR
(Poemas a Maria)

De verde plantei savanas
com sangue estrumei (as) terras
por impulso subi serras
c’mulheres de várias camas

Enfatiei d’ilusão a esperança
a carmino colori saudades
coberta a mentira com verdades
expus aventuras de criança

Libertino, abusei da sorte,
e rindo nas barbas da morte
afrontei de peito todo universo

Gastos’ pincéis, faltando a cor
vi-me impedido de pintar o amor.
- Sobejou coloca-lo em verso


Cito Loio (Adolfo Castelobranco)

MERCADO DO BOLHÃO

MERCADO DO BOLHÃO

No meio das couves de sabóia e dos espinafres
o sorriso gelado
de um molho de nabos


Jorge de Sousa Braga
in “Ao Porto”
Colectânea de Poesia sobre o Porto
Ana Maria Roseira

LIBERTAÇÃO

LIBERTAÇÃO

Ausente o Sol e o vento à desfilada,
As nuvens choram lágrimas de inverno…
À minha volta o mundo feito inferno,
Dentro de mim a vida feita em nada!

Não tarda o meu regresso ao lar paterno,
Finda do meu exilio a caminhada…
Minh’alma da matéria libertada
Entrará, por fim, descanso eterno!

Do Nirvana, o eterno galardão
Irei fruir em paz, pois é razão
Que dá força ao Poeta p’ra sofrer.

Nesta luta por ser… sem nunca ser,
Na Terra deixarei apodrecer
Um monte de miséria e frustração!...

Manoel do Marco

quarta-feira, 20 de junho de 2012

CABELO BRANCO

CABELO BRANCO

Cabelo branco é saudade
Da vida porque passei
Testemunho da verdade
Dum reinado que não tem rei.

São as agruras da vida
E do nosso próprio destino
Elo corrente perdida
Como o chorar do menino.

É poema para fado
No toque de uma guitarra
Num coração despedaçado
Sofrido com muita garra.

Cabelo branco quem não tem
Neste ciclo que é vida
Pensamento e desdém
Por tanta coisa esquecida.

Em todos nós é respeito
Amor paixão amizade
É o sujeito no trejeito
No principio da igualdade.

Cabelo branco é amor
É saudade e sentimento
O desabrochar da flor
Força viva é o tempo. 

João Pessanha
9/07/2005

CÂNONE II

CÂNONE II

Deixa meu amor o teu pensamento ser montanha
Que terei de vencer palmo a palmo
Deixa o teu espirito ser o meu país de ausência
Onde por muito que caminhe nunca chegarei
Deixa meu amor que te leia sílaba a sílaba
Como quem lê Daniel Filipe, Veiga Leitão, Mário Claúdio, Sophia,
Saramago
Deixa o teu sonho ser gôndola que leva a fantasia
Por esta veneza que é o meu corpo
Deixa meu amor o teu corpo sentir o clima agreste do Tibete
Para bem dentro de mim te abrigares
Deixa que os nossos espasmos, gemidos, gozos
Sejam a “Canção da Terra” de Gustavo Mahler
Deixa meu amor que o teu viver seja como o Rio de Ouro
Que corre entre escarpas, feroz manso belo e dourado
Deixa que os teus olhos vejam o arco-íris que une duas cidades
E vê-me na minha rua na “Ribeira do Mestre Resende”
Deixa meu amor o Ontem ser Hoje e caminharemos
De mão na mão ao longo de um rio através da noite até ser dia
Deixa que eu rompa os muros do silêncio num teclado qualquer
Assim na noite dos teus olhos tão impudicamente puros
Deixa meu amor lembrar-te o poema de Luís Veiga Leitão
A uma bicicleta desenhada na parede da prisão “mas que era um carro”
Deixa-me cantar-te como se canta o Homem amado – Amo-te!
Como se canta o Homem esperado – Quero-te em mim!
Deixa meu amor ser a que te espera e que na impaciência
Roda os ponteiros do tempo como pintou o Armando Magno
Deixa-me ser a Mulher pedra, terra, norte, Gaia
Com a cor o movimento o espanto que tu viste à Anabela
Deixa meu amor ao fim do dia ser gaivota dourada do Mestre Zé
Rodrigues
Para repousares no meu corpo feito cais
Deixa que a saudade de um tempo no tempo
Volte a ser realidade e o tempo seja Hoje
Deixa amor os teus olhos profundos como um rio
Recolherem-se nos meus olhos; e fica-te em mim
Deixa que os nossos corpos sejam fogo
Para nele nos fundirmos dos pés até ao beijo
Deixa meu amor que os nossos corpos sejam um só beijo
E neste fusão dos corpos em Harmonia
Tal Cânone dos sentidos e aconteceu o espanto
O espanto em que fiquei quando te vi e toquei
Com os meus olhos feitos dedos
Em ti feito estátua de bronze
                        Tal Cânone da Harmonia

Tudo aconteceu
Quando vi
Obra da escultura Margarida Santos
“Cânone da Harmonia”

Aurora Gaia

ONDE ESTÁ O S. JOÃO DO PORTO?

ONDE ESTÁ O S. JOÃO DO PORTO?

Onde estão as rusgas
Com testos, pandeiretas e bombos?
Onde estão os miúdos que os pais carregavam nos ombros?
Onde está o S. João duma noitada sem fim
Das ilhas da Lomba, de S. Vítor, da Sé
Das Eirinhas, das Antas, do Bonfim?
Onde estão as rusgas com vozes desafinadas
De meninas solteiras, de mulheres casadas,
De castas viúvas e de moçoilas "enganadas"?
Onde está o S. João tripeiro com apalhaçados borrachões.
Com novos, velhos, operários, doutores e loucos foliões
Com ditos brejeiros, com beijos e amores passageiros
Com cidreira, alho-porro, e ramos frescos de cheiros?
Onde está o S. João, o meu S. João do Porto?
Num martelo de plástico sem graça
Numa bebedeira que adormece na Praça
Num palco para estrelas de TV, na Ribeira
Numa fila de gente ulutante, sem eira nem beira!
Ai Porto que te deixaste lentamente matar
E eu morro cansada de, por ti, chorar
Foram-se as rusgas, as cascatas, as tradições
Morreram os catraios que pediam, pró Santo dois tostões
Ficaram as histórias, as memórias e a eterna saudade,
Da noite mais Linda, mas Louca, mais Livre da minha Cidade. 

Maria de Lourdes dos Anjos

PORTO, CIDADE AMADA

PORTO, CIDADE AMADA

Olham-nos as mesmas tardes indiferentes,
Os prédios pasmados nada podem contar…
São os mesmos o Sol e o Mar
Que tanto nos afagaram antes!

Os passeios são os mesmos
As ruas mais velhas mas serenas,
A natureza como ausente
Dos mortais que choram suas penas!

Não era são Nicolau,
Nem era Miragaia,
Mas a cidade era a mesma
Vestida de Oceano e de praia!

Não percorremos o Centro Histórico
Ou visitamos algum belo monumento,
Mas tudo estava enfeitado de nevoeiro
E o que nos cortava o rosto era o vento!

As magnólias olhavam-nos infelizes,
Cobertas de veludo e nívea cor.
As árvores expunham aos olhos as raízes,
Solidárias com as lágrimas e a dor.

Não era o Porto Antigo,
A Sé Catedral ou a Ribeira,
Mas palmilhamos muito passeio amigo,
Jardins povoados de espinhos e roseiras!

Era o meu Povo velhinho
Mas sempre novo,
Guardado no seu coração rico e pobrezinho,
A Alta Memória de um Grande Povo! 

Irene Costa

É JÁ LARGA A HISTÓRIA E CURTA A VIDA

É JÁ LARGA A HISTÓRIA E CURTA A VIDA
Dedicado aos 70 anos de Eduardo Rothes Barbosa – Palácio da Bolsa

Abandonado no seu “fauteuil” pensou…
Como rei que sou ao meu povo dou;
Não as migalhas que o vento espalha,
Mas extensas e vastas, digo eu…

Atitudes de nobreza de alma,
De atenção com os amigos,
De boa cristandade,
De companheirismo e de amizade.

Tudo realizou, não na luta guerreira,
Mas com aquela sabedoria consequente,
Capaz de empregar esforços despendidos
Para hoje ser um homem realizado
E poder sentir feliz
Junto dos seus convidados.
Porventura ausentes outros,
Mas que o coração alberga.
É fácil falar assim de quem se conhece.
Por mim falo dele com admiração,
Por ser e ter um amigo de elevada estatura moral.

Pecados, vícios e outros desatinos
Quem os não tem, nada é perfeito.

Mas, as virtudes são aquela a seu lado sempre…
O jardim que plantou e floresceu, dando-lhe asas,
E como “leão” rei defende.
Tem mais, muito mais, que são os amigos escolhidos…
Que neste nobre Palácio, reuniu.
Por ele e para ele uma salva de palmas estou
Tentado a pedir.


Luís Pedro Viana
in “Enigma”

MAR

MAR
Serei mar, serei terra, serei bucolismo, o
emissor pelas gaivotas…

Pois…

Que poema que se sente, que mar esse,
que não terá fundo.
O revolto das tuas águas enfurece, não rugir
ofende,
mas bailar na tua espuma, algum sonho,
também, se acende.

Então…

Que foz te encomendaria, onde todos
os amores te esperassem, nem que
fundos os seus sentimentos, não
afogassem as tuas ansiedades. 

V. L.

COLAR DE ESTRELAS

COLAR DE ESTRELAS
(Monólogo de uma Filha)

Mãe!...
Já viste as estrelas do Céu, Mãe?

São tão lindas as estrelas!

Mãe! As estrelas são brilhantes!

As estrelas parecem ser feitas de ouro,
não é, Mãe?!...

Ah, Mãe!
Como eu gostaria de ser grande,
alta, para poder pegar um punhado,
bem cheio de estrelas.

Com as mais pequeninas,
faria uns brincos compridos, pendentes.
(Gosto tanto de brincos pendentes!...)
Com as restantes estrelas,
faria um colar.

Deveria ficar bonito,
com estrelas de vários tamanhos,
não achas, Mãe?

Ah, Mãe!
És tão bonita!...

Como irias ficar ainda mais bonita,
se usasses os brincos
e o colar feito de estrelas,
que eu fiz para ti.

Sabes, sobraram algumas estrelas;
se quiseres pôr no cabelo…

Para a Primavera, faço-te um colar de flores.
Queres?

Adoro-te, Mãe!


Ana Maria Roseira
lido por Alzira Santos

O SONO DO JOÃO

O SONO DO JOÃO

O João dorme...(Ó Maria,
dize áquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho...
E tu Mãe! E tu Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

O João dorme, o inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! canta-lhe uma canção,
os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, Ó Maria
Dize àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os anos irão passando.
Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda, e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:

Não vá o João acordar...


António Nobre
in “Breve antologia da Poesia Portuguesa”
lido por Miguel Leitão

O Portugal futuro é um país

O Portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que chamarem
Portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o Portugal futuro 

Ruy Belo
1933-1978
lido por Maria de Fátima Martins

MERIDIONAL

MERIDIONAL
CABELOS

Ó vagas de cabelos esparsas longamente,
Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,
E tendes o cristal dum lago refulgente
E a rude escuridão dum largo e negro mar;

Cabelos torrenciais daquela que m’enleva,
deixai-me mergulhar as mãos e os braços nus
No báratro febril da vossa grande treva,
Que tem cintilação e meigos céus de luz.

Deixai-me navegar, morosamente, a remos,
Quando ele estiver brando e livre de tufões,
E, ao plácido luar, ó vagas, marulhemos
E enchamos de harmonia as amplas solidões. 

in “O livro de Cesário Verde”
lido por Amândio Vasconcelos

A GRIPE DE UMA MULHER, À BOA MANEIRA PORTUGUESA

A GRIPE DE UMA MULHER, À BOA MANEIRA PORTUGUESA
dedicado a: António Lobo Antunes, e ao meu irmão Eduardo Roseira

- Estou com gripe,
sinto-me mal,
dói-me a cabeça,
parece que estala…

- O quê? Ponho uma tala?
- Não, não é isso, homem!
Parece que estala, de tanto doer…
(Oh! Este homem com quem casei, só me faz sofrer…!)

- Estou cheia de febre,
tenho a cabeça a rebentar.
Dói-me tudinho,
desde os cabelos até os pés!

- Não fazes nada!?
Sou sempre eu…!!

- Pronto, não te incomodes,
eu saio da cama, e faço os cafés.
(Irra, que é demais…! Já uma mulher não pode estar doente!)

- O quê? Estás carente?
Queres um miminho?
(Quem te desse, era com um casqueiro duro nesse focinho…!)

- Não, não disse nada…!
Não te aborreças.
Eu vou à rua,
compro pão fresco,
trago o tabaco e o jornal.
E de caminho, passo pelo talho,
compro galinha,
e mais logo faço uma canjinha.
(Imprestável!! Egoísta…!)

- Ah, preferes uma cerveja e um petisco – umas moelas!
(Morcão! Dava-te era um purgante pelas goelas…!)

- Queres a camisa azul,
Vais ver a bola?
Deixa, está já lavada.

Eu passo-a a ferro…
(quem te acertasse na mona…, com a… com a… com o raio da bola!)

- Queres descansar?
Podes fazê-lo!
Eu faço a cama,
calo os miúdos,
faço o almoço,
e passo a ferro.

- E tu descansas…!
Quando acordares,
vens almoçar.
(Rais parta, este morcão não faz bóia!)

- Estás-me a dizer que logo à noite,
vais c’os amigos p’rá ramboia
jogar dominó.

- Vai, vai descansado,
Porque para mim…
é bem melhor eu ficar só!

- O quê?
Queres saber se estou melhor?
Como é que estou da gripe?
Olha…! Pu-la… na prateleira!
(Para não te pôr a ti…!)

Sou uma mulher de Fé!
E, como as árvores,
ou curo a gripe,
ou morro de pé!

- Quanto à gripe…,
mandei-a…,
Mandei-a… pró caraças!!! – curei-a com a tua água-pé!!!


Ana Maria Roseira
9 de Junho de 2012