sábado, 20 de novembro de 2010

A CASA ONDE NASCI

Avelino Rocha
A casa onde nasci

Na minha rua, a casa onde nasci
Está agora ladeada
De paredes gastas. Mais nada!
Foram-se os velhos.
Os novos partiram.
A casa onde nasci está ladeada
De fantasmas tristes. Mais nada!
A dona Adelaide, o Sr. Ferreira
A dona Fernanda, o Sr. Horácio
A Família Tiago da Costa
A dona Maria e o Sr. Gaspar
Estão juntos e vivos em qualquer lugar
Sinto-os presentes. Ouço-os falar.
A casa onde nasci é a memória sem preço
Do tempo feliz que me serviu de berço
A casa onde nasci terá sempre um inquilino a mais:
A saudade do grande amor que uniu os meus pais.

Maria Lourdes dos Anjos
in Nobre Povo

AOS MEUS PAIS

Graça Patrão
Aos meus pais

Nos olhos um mar límpido por desvendar
Nas mãos a foice que colhe o pão
Nos braços a força da guerreira
Nos lábios a verdade que às vezes dói
Nos passos as feridas de pedras soltas
No coração um diamante por lapidar
Na vida, uma árvore que não tomba
Deu-me uma alma inquieta e firme também
Orgulho-me dela e chamo-lhe Mãe.

Nos olhos, o silêncio do céu
Nas mãos a ternura de uma rosa
Nos braços a força da tempestade
Nos lábios, as palavras certas
Nos passos miúdos, um rumo
No coração um amor único
Na vida, um exemplo a seguir
Deixou uma saudade que não s’esvai
Em duas palavras enormes: Meu Pai.

Maria Lourdes dos Anjos
in Nobre Povo

COM PASSOS DE VIDA

Carlos Dugos

Com passos de vida

Tenho saudades de nós
Dos sonhos partilhados,
Das mãos silenciosas
Dos olhares cheios de promessas.
Do primeiro beijo.
Da vergonha, de ter desejo,
De ficarmos sós.
De acordarmos juntos, na nossa manhã primeira
Como a vida correu ligeira!
Ai, que saudade de nós!
Adormecemos com um filho no regaço
Acordámos com netos enchendo o mesmo espaço
E quando a vida nos tira a voz
Os amores que deixamos, terão saudade de nós.

Maria Lourdes dos Anjos
in Nobre Povo

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Lourdes dos Anjos, Luz Morais, Cassio Mello, Artur santos e Danyel Guerra
Sílvia Soares, artista plástica, poetisa, galerista

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

POESIA NA GALERIA EM NOVEMBRO

Danyel Guerra, Lourdes dos Anjos, Constância Nery

Carlos Andrade (de pé), Lourdes dos Anjos, Luz Morais, Cassio Mello e Danyel Guerra
à esquerda o pintor Pedro Charters d'Azevedo com sua esposa e amigos
Danyel Guerra, Dr. Agostinho Costa, Constância Nery, Carlos Andrade e Loudes dos Anjos combinam os últimos detalhes para a tertúlia de poesia
Pintor Pedro Charters d'Azevedo, Constância Nery
Mário Franco, Pedro Charters d'Azevedo e sua esposa, Constância Nery e Luz Morais

Eduardo Roseira (esquerda), Lourdes dos Anjos (direita)
Cassio Mello, Artur Santos e Danyel Guerra


GARGALHADA

TERESA JOAQUINA TELES GRAÇA


GARGALHADA

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trémulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heróica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.

Cecília Meireles
in 'Viagem'
Recitado por Eduardo Roseira

PÁTRIA DOENTE

Alberto d'Assumpção

PÁTRIA DOENTE

Ninguém te cura meu pequeno Portugal,
Tens no fascismo o teu carrasco nojento,
Verme que vive dentro do teu sofrimento,
A sugar-te o sangue e a semear o mal.

Que o fogo rasgue o ventre do animal,
O lixo é podre, inútil, peçonhento.
Descansa mais o mar sendo calmo o vento,
É mais azul o céu depois do temporal

Ó pobre enfermo abandona o leito,
Os punhais antigos que tinhas no peito,
São hoje de papel, punhais de fazer rir.

As chagas profundas secaram nos joelhos,
Só com o fresco odor dos cravos vermelhos,
Faz de ti jardim, todo o ano a florir.

Álvaro Barciela
Recitado por Mª Lourdes dos Anjos

MOMENTO

Isabel Alfarrobinha


MOMENTO

Neste silêncio de gaivotas feridas,
penso o teu rosto vestido de amores,
em Verões escaldantes
da nossa infância acostada
a cais de navios ausentes!
Eram longos os estios,
os pés enterravam-se nas veigas,
brotando uma frescura que acalmava
corpos e ancestrais nogueiras!
À tardinha esgotados,
baloiçávamos na vontade de partir!
O ruído das cigarras cantadeiras
ensurdecia os ouvidos,
os campos em delírio,
ofereciam trigo maduro
molhado em compota de maçã!
Tudo ficava retido
em momentos únicos
de serões prolongados
que eram contados e recontados
por todos nós!
À noite as camas de ferro,
cobertas com liteiros de trapo,
apagavam os cansaços,
tudo ficava calado,
e por fim calmamente, adormecia!

Maria Olinda Sol
Recitado por Artur Santos

Os namorados pobres

TERESA JOAQUINA TELES GRAÇA



OS NAMORADOS POBRES

O namorado dá
flores murchas
à namorada
e a namorada come as flores
porque tem fome

Não trocam cartas
nem retratos nem anéis
porque são pobres

Mas um dia
têm muito medo
de se esquecerem
um do outro
então apanham
um cordel
do chão
cortam o cordel
e trocam alianças
feitas de cordel

Não podem
combinar encontros
porque não têm
número de telefone
nem morada
assim encontram-se
por acaso
e têm medo
de não se voltarem
a encontrar

O acaso
não os favorece

Decidem nunca sair
do mesmo sítio
e ficarem sempre juntos
para não se perderem
um do outro

Procuram um sítio
mas todos os sítios
têm dono
ou mudam de nome

Então retiram
dos dedos
os anéis de cordel
atam um anel
ao outro
e enforcam-se

Mas a namorada
tem de esperar
pelo namorado
porque o cordel
só dá par[a] um
de cada vez

O namorado
descansa à sombra
da figueira
e a namorada
baloiça
na figueira

O dono da figueira
zanga-se
com os namorados pobres
porque julga
que estão a roubar figos
e a andar de baloiço

Adília Lopes
in “ Resumo – a poesia em 2009”
Recitado por Eduardo Roseira

sábado, 13 de novembro de 2010

Mário Franco, Carla Ribeiro, Carlos Andrade, Lourdes dos Anjos, Luz Morais, Cassio Mello,Artur Santos
Carla Ribeiro, Carlos Andrade, Lourdes dos Anjos e Luz Morais
Carlos Andrade

Lourdes dos Anjos, Luz Morais, Cassio Mello, Artur Santos, Danyel Guerra
Luz Morais, Cassio Mello, Artur Santos, Danyel Guerra
Lourdes dos Anjos, Luz Morais, Cassio Mello, Artur Santos, Danyel Guerra, Constância Nery
à esquerda o pintor Pedro Charters d'Azevedo com a sua esposa
Lourdes dos Anjos declama
Lourdes dos Anjos
Lourdes dos Anjos

BALADA PARA UMA MULHER

Geraldina Rayo



BALADA PARA UMA MULHER

Reparem quando ela passa.
Beija os filhos no olhar!
Esta palavra ternura
quem é que a soube inventar?

Lá vai ela. Como tem
os lábios cor de romã!
Ela vai. Mas quem bebeu
nos seus seios a manhã?

Tem ancas de sofrimento.
É simples como a pobreza.
Nos cabelos dorme o vento
com a palavra tristeza.

Lá vai ela. Minha dor.
Égua de prata a correr!
Vai a fingir que o amor
também se pode vender.

Lá vai. Lá vai. E que importa
a dor que me nasce a rodos?
Ela vai de porta em porta
vender um pouco de todos.

Ela vai. Como se fosse
minha irmã ou minha mãe.
É como o vinho mais doce
e mais amargo também.

Lá vai ela. Minha dor.
Égua de prata. Luar.
Vai a fingir que o amor
também se pode pagar.

Lá vai. Lá vai. E no peito
rompe uma flor de ciúme.
A raiva cresce no leito
entre lençóis de azedume.

Ela vai. é como a luta
de um homem contra a desgraça.
Chamem-lhe flor, mãe ou puta
mas não riam quando passa.

Lá vai ela. Meu amor.
Égua de prata a morrer!
Vai a fingir que esta dor
também se pode esquecer.

Joaquim Pessoa
dito por Lourdes dos Anjos

CIDADE

Fernando Gomes
CIDADE

Vai deslizando a cidade, e gente, e mais
gente, e gente até mais não. Cai a noite,
o dia, já só não cai pregão.
Tanta casa, ruas amortalhadas,
vielas perdidas, e a desencada varina
que se fica esquecida de apregoar tradição.
Mortas de palavras, quando se entra na noite,
só pobres almas penadas se arrastam nas calçadas
a queimar a matéria, a vida.
Já não se ouve o teu cantar nem o perfume dos teus
jardins de cameleiras despidos, pedaços de outras
vidas.
E nas sacadas graníticas, onde o farol se apagou,
vai ficando sombra fria, só envolta em betão.

Elvira Santos
in Era Agosto e Chovia

A COMICHÃO DO POEMA

Victor Silva Barros

A COMICHÃO DO POEMA

Assentado me estou
numa estrutura
de pura literatura.
Minha avó me aconselha:
escrever sem que torça a orelha
comer sem que estoire a barriguinha;
melhor é tentear do que fazer poemas de cernelha
pegados à moda antiga.
Melhor de facto avó do que sonetos
pegados com saliva
são estes tersos versos de formiga:

   uma palavra preta
   com cem patas
   apoquenta o poeta
   que a procura de gatas.

   Pica-lhe o traseiro
   entra-lhe nas unhas
   faz-lhe o mal primeiro
   do que a caramunha.

   A palavra insecto
   corre-lhe nas pernas
   ameaça o recto
   e as partes internas.

   O poeta cata
   fala mais barato
   chamando-lhe ingrata
   descalça o sapato
   e ei-lo que mata
   o poema-chato.

José Carlos Ary dos Santos
in Insofrimento In Sofrimento, 1969
lido por Eduardo Roseira

Ó MEU PAÍS

Carlos Dugos

Ó MEU PAÍS

Ó meu País, ó pátria do meu sangue,
das minhas asas, das minhas entranhas,
meu canto doloroso há-de soar
como o vento nos cumes das montanhas.
Como o vento no cume das montanhas
meu canto doloroso há-de soar.
É esta a minha luta, a minha guerra:
cantar cada torrão da minha terra.
Nascemos ambos há mais de oito séculos
e desde então eu sei que sou filha,
não só de cada pai, de cada mãe,
mas de cada regato, cada fonte,
cada falésia, cada penedia,
cada gota de mar, cada raiz
deste antigo país de pedra e mato.
Descendo em linha de Viriato,
de Afonso Henriques e de Egas Moniz.
Nasci na serrania entre penedos,
alcateias de lobos e rebanhos,
tudo isto era já pátria imortal,
Lusitânia a sonhar com Portugal.

Ó meu País, meu canto há-de soar
como soa o trovão na tempestade,
pois para te cantar não tenho idade,
não tenho dimensões, sou mais do que eu.
Ergo os braços e vede! Tenho asas,
e subo pela Fé até ao céu,
e se preciso fosse, ó meu País,
andaria descalça sobre brasas,
lutaria com lobos e javardos,
bebendo fel e mastigando cardos.
Trovadores, a mim! A mim, jograis!
Sai do Cancioneiro, D. Dinis,
vinde cantar e semear pinhais!
Vinde cantar, Luís Vaz de Camões,
que a Pátria está doente de tristeza,
retalhada por ódios e traições!
Vinde cantar, Poetas! Gil Vicente,
vinde cantar, dizer à nossa gente
que o sangue que adobou este País
era sangue de heróis, cuja semente
deu flor e fruto pelos tempos fora!

E agora, Portugal? Agora, agora?
Agora um só caminho, uma só rota,
ó meu País, mas serás tu capaz
de voltar alguns séculos atrás,
não no tempo ou no espaço mas na alma,
na vontade titânica, implacável,
que dos previstos campos de derrota,
a cruz erguida, fez Aljubarrota?

Ó meu País, doente de amargura,
na seara do amor alastra o joio,
há que limpá-la da semente impura,
grão a grão, alma a alma, moio a moio:
agora um só caminho, o da Esperança.
Pode morrer um povo que além-mar,
ignorando terrores e cansaços,
pela força das almas e dos braços,
abriu caminho a golpes de machado,
construiu pontes para galgar rios,
desbravou matas para erguer cidades?
(Lembrai-vos do Mostrengo, do Gigante:
soprava tempestades pelas ventas
mas dobrámos o cabo das Tormentas!)
Atentai! Num dos pratos da balança,
o Mostrengo, o Gigante grosso e imundo;
no outro, Portugal, D. João II!

Ai, quantos, quantos cabos já dobrámos!

Neptuno, Adamastor, bem o sabeis!
Sujeitava-se o mundo às nossas leis,
nós, Portugueses, não! E então agora,
ó meu País, hás-de puxar à nora
ou curvar a cabeça porque és pobre?
Não e não, que ser pobre é não ter Fé,
não ter alma, e nós somos ricos de alma.
Deixa passar as ondas, a maré.
Será longa a viagem, será dura?
Quando é que foram fáceis as viagens,
os caminhos da glória, da aventura?
Bartolomeu, Cabral, Vasco da Gama,
por que preço pagastes vossa fama,
o caminho das Índias, dos Brasis?
Não, Portugal, não és um país pobre
porque a tua moeda não é de oiro,
não é de prata, é de um metal mais nobre.

Acabaram no mundo as Descobertas,
já são velhas de mais as velhas rotas,
já não há no planeta ilhas desertas,
povoadas de sáurios e gaivotas?
Que importa, meu País, se ainda és capaz
de descobrir, em vez de continentes,
penínsulas de amor, ilhas de paz
onde possam viver as tuas gentes?
Ergue a cabeça, acalma a tua dor.
Qual o país sem nódoa ou cicatriz?
O vendaval sacode folha e flor;
pode o fruto cair, fica a raiz.
Coragem, Portugal! Doem-te as chagas?
Mas não serão catanas nem adagas
que te farão esquecer essa glória:
sangue e suor, vitórias e derrotas,
com tudo isto é que se faz a História.
Na vida de um país há bom e mau:
Jesus, e era Jesus, chorou no Horto,
sofreu, e só depois subiu ao Céu.

Não, Portugal, não és um País morto,
que Deus é o timoneiro desta nau
e chegaremos todos a bom porto.
É de pedras e cardos o caminho?
Que importa? Tudo é vida, rosa e espinho.

Vem de longe, da História, a nossa herança
de Fé, de Caridade, de Esperança.
De regresso dos quatro continentes,
das Áfricas, das Índias, do Brasil,
da Austrália, do Japão e das Antilhas,
serão estas, acaso, as Novas Ilhas
onde irão aprovar as caravelas
do meu país em busca do futuro?
São asas, vede, as enfunadas velas,
Portugueses, de pé! Saltai o muro,
os arames farpados do terror,
que não há neste mundo Adamastor
capaz de destruir a Nova Aliança
do Portugal da Fé e da Esperança.

Alcateias de lobos esfaimados,
embrulhados nas sombras dos poentes,
cobiçam em redor dos povoados,
o sangue dos rebanhos inocentes.
Alerta, Portugal! Cada ribeiro
murmura, gota a gota: «Tem cautela!»
e de cada pinhal, cada pinheiro
é vigilante, atento sentinela.

Tens inimigos, sim, gente estrangeira
que sempre cobiçou teu património
e movida por artes do demónio
em África rasgou tua bandeira.
(Só a verde e encarnada porque a outra
no coração do Povo está inteira.
Só a verde e encarnada, a transitória,
que a eterna, a verdadeira, para sempre
há-de ficar nas páginas da História.)
Ó povos de além-mar, vossa tristesza
são saudades da pátria portuguesa.
Entretanto, atentai! Ainda lá estamos
e estaremos no muito que sofremos,
e estaremos na língua que falamos.

Bem mais triste é o irmão ao seu irmão
mostrar o punho sem lhe dar a mão.
Tem, porém, fé, que o próprio inimigo
há já muito perdeu as ilusões,
não ignora que Deus está contigo,
e Deus, ó meu País, sabe o que faz:
deu-te santos e heróis, deu-te Camões,
deu-te o Mar Tenebroso, deu-te as ilhas
e metade do mundo em Tordesilhas,
mas tem mais, muito mais para te dar,
não praia ou ilha ou continente ou mar.
Não é com lutas ou com Descobertas
que se faz hoje a verdadeira História.
A quem importam hoje ilhas desertas?
Não, com certeza, ao povo português!
Na mata virgem foste pioneiro
e nas rotas salgadas o primeiro,
mas hoje, ó meu País, a tua glória,
o teu destino é descobrir a paz,
e o mundo saberá mais uma vez
de quantas maravilhas és capaz!

Fernanda de Castro
in "Poesia II"
dito por Lourdes dos Anjos

A VALSA

CRISTIANE CAMPOS


A VALSA

A vida
   é uma valsa
      de falsa
         ilusão.
      Volteia
   tão cheia
de sonho
   e paixão.
      Começa-se
         a medo,
      passinhos
   sem jeito,
tropeços
   que a mãe
      ampara
         no peito.
      Não caias!
   Sai dessa,
caminha,
   vá lá.
      Acerta
         o compasso.
      É isso,
   já está!
Começa
   a correr,
      começa
         a saltar.
      Prá frente,
   sem medo!
Começa
   a sonhar!
      E vem
         a escola,
      liceu,
   faculdade;
Percebe-se
   então
      qual é a
         verdade:
      emprego,
   trabalho,
cansaço,
   tormento,
      juntando
         à mistura
      amor,
   casamento.
E o ritmo
   diário,
      ternário,
         acelera:
      manhã,
   tarde, noite,
não corras,
   espera!...
      E vêm
         os filhos,
      sarilhos
   dobrados.
E vem
   a doença
      com cheiro
         a finados.
      E luta
   que luta,
sem tréguas.
   Coragem!
      A vida
         é assim!
      Prossegue
   a viagem…

E chega-se
   ao fim
      olhando
         p’ra trás…
      A vida
   esfumou-se,
cansada,
   fugaz.
      O que é
         que ficou?
      Vazio…
   Saudade…
e um fundo
   receio
      da eter-
         nidade.
      Que está
   para além
do que
   já passou?
      Que a valsa,
         tão falsa…
      essa
   terminou!

José A. C. Pacheco de Andrade
in “Salpicos de Vida”
dito por Elvira Santos

AFIRMAS QUE BRIGÁMOS...

Pais Garcia

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
e vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembrança? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo – é minha! – a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
não sei se o queres levar, já está no fio.
E o casaco roto, aquele vermelho
que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que já não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?

De quem é esta briga? Não me lembro.

Rosa Lobato de Faria
lido por Loudes dos Anjos

NÃO HÁ VAGAS

JORGE MURILLO TORRICO


NÃO HÁ VAGAS

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz e o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
  está fechado:
  “não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

          O poema, senhores,
          não fede
          nem cheira

Ferreira Gullar (Brasil)
dito por Eduardo Roseira

PRINCÍPIO

OCTAVI INTENTE


Princípio

Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vida na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.

Miguel Torga
in “Penas do Purgatório”
dito por Mário Franco

Jorge Maravilha

ANA CRISTINA DIAS




Jorge Maravilha

E nada como um tempo após um contratempo
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando, até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
Ela gosta do tango, do dengo, do mengo, domingo e de cócega
Ela pega e me pisca, belisca, petisca, me arrisca e me enrosca
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
E nada como um dia após o outro dia
Pro meu coração
E não vale a pena ficar, apenas ficar
Chorando, resmungando até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge Maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão do que dois pais sobrevoando

Chico Buarque
lido por Danyel Guerra

AS LINHAS DO TEU CORPO...

MARINA FÁTIMA


As linhas
do teu rosto
rimam
inteiramente
com os traços
do meu destino.
Remexendo
no tempo
nesta espiral
em que corro,
a minh’ alma
adormecida
despertou
a outra metade
que andava
perdida

Carmen Navarro
dito por Carla Ribeiro