sexta-feira, 26 de outubro de 2012

DEIXA LÁ


DEIXA LÁ
 
a metáfora resiste e estrebucha
ganha forma insidiosa e busca
maneira mais subtil de se afirmar
faz-se ideia revoltada cínica
faz-se infâmia
criatura metamórfica sedutora
vontade perfumada de dizer
que ultrapassa e é mais do que a figura
na qual e para a qual tu a criaste
e grita
esperneia para além de todos nós
que a pensamos
não nos respeita foge para reinos tão estranhos
que nos deixa como órfãos tristes desolados
a metáfora torna-se diferente cresce
e não explica
não explica nada
à metáfora só desejaria todos os suplícios
não fosse ignorar como dizer
sem ela
o que não pode ser guardado
que tu és o mar
(mais do que uma imagem
cópia imperfeita desse mar)
és mais que as ondas mais que a cor
mais que a imensidão absurda
tu és o mar o cheiro a mar
portanto
recordas a cor e a frescura
as viagens por fazer o amor já feito
fazes ondas quando queres
e tens o aroma e ponto
o resto é entre ti e a metáfora
pois és virtude ela defeito
o mar é grande e é profundo
e tu és para além disso
és mais que tudo és outro mundo
o mar são as sereias
os golfinhos que procuram
e não veem o nosso lado melhor
e são águas nas areias
quentes ir e vir dos nossos dias
o mar são os salpicos quando os pés
na hesitação dos corpos
brincam atrevidos evitando o calafrio
do mergulho
o mar é o caminho entre nós
e as américas possíveis
espaço imenso por dizer
conquistas descobertas e trilhos escondidos
rotas invisíveis
apagadas pelas vagas de si mesmo
o mar são as histórias que o tempo
coloriu com seus mistérios
é a terra dos atlantes
é a luz do sol filtrada distorção incrível
pelo excesso e falta dela
o mar é a esperança de quem foge
proscritos em terras negras e pesadas
o mar é uma fronteira sem donos nem tiranos
estrada sem limites sem pegadas
o mar é ilusão
miragem que agarra e que sustém
respiração
e é então
que tu te irritas com a metáfora
e levantas mar crispado
o mar és tu
porque me lembras tanta coisa que não explico
a raiz de todas as imagens
belas tão somente porque dizem
sem conter e compreender
sem complicar e nos prender
que o mar sendo o teu cheiro
é também a tempestade
a revolta que se instala
que nos quebra nos afoga
são titãs inconformados
com o fim dos sonhos
dos seus deuses reformados
a negação do ar e a negação dos olhos
profundeza e escuridão
o mar é uma masmorra
tu não
por isso tem cuidado
com a riqueza das palavras
que as metáforas que colho
ao passar nos campos verdes
dos poemas
são adubo e são a rega
mas não são
nem podem ser
as maçãs com que te tento
pois não
o fruto és tu
quando digo que tu cheiras como o mar
não te zangues com a metáfora
não a arrastes pelos cabelos
serpentes que te enganam e te puxam
por caminhos mais sombrios
maremotos e correntes perigosas
ouve apenas o espaço entre as palavras
deixa entrar os rios
deixa
aproveita a luz do sol
a chuva quando cai
deixa
que a simplicidade maior que há
é deixar ir
 
Eduardo Leal

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

POESIA NA GALERIA: NADA DE… NADA

POESIA NA GALERIA: NADA DE… NADA: NADA DE… NADA   Tanto sonhei, tanto quis, que não me sobrou mais nada! Tanto sonhei, tanto quis ser semente germinada de um a...

NADA DE… NADA

NADA DE… NADA
 
Tanto sonhei, tanto quis,
que não me sobrou mais nada!
Tanto sonhei, tanto quis
ser semente germinada
de um amor feito raiz
que não me sobrou mais nada!
 
Sonhei ser música ao vento,
notas soltas pelo ar…
Sonhei a Terra cantada
sem pauta nem instrumento…
Ser estrela, ser a lua.
mas olhei e não vi nada!
 
Tanto sonhei ser a flor
muito airosa e delicada
num canteiro multicor.
Mas fui no sonho roubada
pela abelhinha airosa
que colhe o néctar da rosa
leva tudo, perfumada
e não deixa ficar nada…
 
E a Terra volteia
em constante movimento
dando o seu consentimento
ao sono da Humanidade.
aos sonhos da mocidade!
 
Volteia estonteada
com paixão, encantamento,
mas não parece ouvir dizer…
que eu nada sou, afinal,
neste palco universal
que é o mundo onde vivemos!
Nem sequer fui boa actriz…
pois representei bem mal
o papel que eu tanto quis!
 
Queria ser tudo e sou nada…
Quando Deus nos deu o sonho
como tempero da vida,
não quis o homem tristonho,
criou-o alegre e contente,
Pôs-lhe na alma o sorriso…
e ofereceu-lhe o Paraíso!
Mas o homem não viu nada,
apenas sua ambição,
seu ódio, perseguição,
conquista desesperada
É um alonga caminhada
Mas também queria por fim
sentir-se feliz, amado!
Difícil de procurar
esse amor que é a própria espera,
ou o ser que mora ao lado.
Amor é sentir-se unido
por um laço bem apertado, 

Não sentes isso, não vives, porque então não
sentes
                                                           Nada… 

M. Paulina de Sousa

in “Porto, Modo de Dizer” António Pina

5.
Amei muitas cidades ao longo de muitos e incertos anos. Em tardios quartos de hotel, indistintas estações de Metro, ruas intermináveis, encontrei e perdi cidades. O meu coração está cheio de reflexos de vidraças, de neves desfeitas, de rostos, de rumores; passaram por mim brevemente mármores e jardins, céus e tempestades. Deixei em aeroportos, em comboios, em bares, em urinóis, objectos obscuros e memórias indecifráveis. Falei demais, faltei a encontros, comprei e não parei. E parti, algumas vezes olhando, sem querer, para trás, mais pequeno e mais pobre do que quando chegara. 
Mas em nenhum outro lugar senão neste poderia morrer. E nenhum outro, quando eu morrer, morrerá comigo.
 
6.
Cafés do Carmo, sórdidos subúrbios, domingos, o último eléctrico da madrugada recolhendo pesadamente à Boavista; um certo plátano de um certo jardim; dois ou três nomes, um de mulher (Marianne); um quarto clandestino; um amigo preso, outro morto para sempre; o Verão; as filhas crescendo fora de mim; uma mala com livros; uma cava cheia de homens e de perguntas e uma noite interminável; um poema de amor; Eliot, Rilke, Eugénio de Andrade; o vizinho enforcado na macieira; um naufrágio; dias de horror, de aflição; insónias, lágrimas; um sítio onde havia uma casa; uma doença de pele, uma traição; perdição, exaltação, melancolia; e fumo, e água, e pedra, e todas as coisas que não posso dizer. Uma cidade é mais do que ruas, casas, pessoas. Provavelmente todas as cidades o são; mas só esta me pertence deste modo. 

Manuel António Pina
in “Porto, Modo de Dizer”
lido por Lourdes dos Anjos

MEU GALOPE É EM FRENTE


MEU GALOPE É EM FRENTE 

Direis que não é poesia
e a mim que importa?

Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das ilhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.

O meu grito e meu canto é a voz de milhões.

Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.

Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?


E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?

Eu sigo e seguirei.
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
Por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas ilhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
– por terra, mar e ar.

Direis que não é poesia
e a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.

É andar, é andar!
 

Mário Dionísio, 1943
lido por Alzira Santos

LUZ


LUZ
 
A luz dos olhos meus
Troquei pela dos olhos teus.
Agora estou ceguinha,
Que a tua luz, não é minha.
 
O brilho dos olhos teus,
Encandeou os olhos meus;
Perdida na contemplação,
Esqueci de os pousar no chão.
 
A luz dos olhos meus
Louca, fugiu para os olhos teus;
Numa paixão esquecida,
A sua luz perdeu vida.
 
Quem roubou dos olhos meus,
A luz que sendo tão minha,
Alumiava os olhos teus,
Tal era o brilho que tinha?
 
- Ai, ai, meu Deus!
Pudesse de novo trocar
A luz dos olhos meus,
Pela luz dos olhos teus,
Para ceguinha não ficar! 

Maria Irene Costa
in “Teia de Afectos”

HOMENAGEM AO POETA ANTÓNIO PINA


HOMENAGEM AO POETA ANTÓNIO PINA
 
Quando um poeta morre
É o todo que volta ao nada
Porém, muito nos deixa
Do todo que em nós escorre!
 
Fosse o mundo como pensava
Do mundo não teria queixa!
 
Quando um poeta se vai embora
Parece que se vai mas não
Pois noutro nasce outro ai
Do que se foi irmão
Que em seu peito mora
Continuando o triste fado
De viver num mundo redondo
Cada vez mais quadrado!
 
Quando um poeta morre
É o todo que volta ao nada,
Mas da vida que nos escorre
A poesia do nada é o todo!
 
Parece que o nada morre,
mas é do nada que o todo escorre! 

Silvino Figueiredo

VOU FALAR DA MINHA MÃE

 
VOU FALAR DA MINHA MÃE
 
A morte ladra roubou-a
Há um vazio visto em mim…
Por muito mais que se diga
Que ela faz parte da vida
Levou-me a minha maior amiga
Razão porque falo assim.
 
Pode dizer-se muito
Que a natureza manda
E que vai tudo pró céu…
Mas meu coração triste anda
Porque perdeu quem o deu.
 
Vou falar da minha mãe
Que é falar sempre com ela
Que há algo que se sente…
Falar de alguém, muito bela
Que permanece na mente.
 
Os dias; atuais são grandes
Minha mãe, assim lembra
Grande; sempre, o seu ser…
O mês de agosto levou-a
Mas falar sobre ela é mesma
Fórmula; de nunca a perder. 

José Oliveira Ribeiro

Do meu tempo, só o vento é intemporal.


Do meu tempo, só o vento é intemporal.
Todo o resto é efémero, curto e fugaz
nos meus dias de longa privação
que me castram no ser e no porvir
 
Alongo o meu sorriso escondendo esta aflição
na ânsia que o tempo me traga vento eterno,
mas é no meu sentir que sinto esta castração
e sei que o vento me traz, tempo curto, tempo efémero.
 
Prolongo a coisa fútil que me traz o vento,
na ânsia que o tempo me traga glória,
mas é no meu sentir e ser de privação
que sinto que o meu vento é tempo pouco e pouca história. 

Angelino Silva

O TEMPO EM QUE TOMÁVAMOS CAFÉ

 
O TEMPO EM QUE TOMÁVAMOS CAFÉ

Lá, junto à tangerineira,
Meu pai rachava lenha
Agachado, eu ficava absorvido
Com aquela destreza de
Levantar
E
Descer o machado: o corte preciso
Eu queria crescer, aprender aquela arte

Depois, meu pai encostava o machado
No tronco da pequena tangerineira
Eu levava os pauzinhos de lenha
Para a cozinha, um de cada vez: eu era pequeno
Minha avó, no velho fogão, arrumava os paus e gravetos,
Derramava um pouquinho de querosene
Um fósforo... Estava o fogo aceso!
Eu queria crescer, aprender aquela arte

Sobre a chapa, o bule. Dentro do bule, a água fervendo
Era só colocar algumas colheres de pó de café e açúcar
Depois, o café sendo coado...
A fumacinha esvaindo-se, as xícaras sobre a mesa
O bico do bule entornando o cafezinho fresco
Eu queria crescer, aprender aquela arte.

Tia Valdecira lavava a louça
E ficávamos conversando, rindo...
Meu avô, no canto, reclamava que o café estava muito doce
Lá na estrada, passavam, em seus jumentos, cavalos, burros
Outros camponeses: acenavam, davam bom-dia, boa-tarde...
Respondíamos todos a um mesmo tempo.

Ah, mas só hoje é que sinto a leveza dos pauzinhos de lenha
O sabor daquele café sem igual,
Só hoje é que vejo a fumacinha subindo da xícara
As pessoas passado na estrada e acenando,
Que ouço o crepitar dos paus e gravetos,
Aquelas velhas conversas à mesa, entre um gole e outro...
Mas hoje sou apenas um café frio na cafeteira

Ali no canto, há um banquinho imóvel e mudo
Não ouvimos mais as reclamações de meu avô
Minha tia não está mais aqui para lavar a louça
Já não há mais a velha tangerineira
Para se encostar o machado
Que também não existe mais
Nem tão pouco há mais bule e o fogão de lenha
Bebemos o café silenciosamente, calados
Esse café por mais doce, sempre amargo.
Às vezes, uma palavra ou outra
Para vomitarmos um pouco o silêncio que os engole.

E só hoje é que eu queria
Carregar os pauzinhos de lenha,
Um de cada vez.
 
Rúbio Rocha de Sousa
lido por David Cardoso

PASSASTE


PASSASTE
 
Vi-te passar por mim rapidamente
Julguei-te por instantes como meu
E insana não vi de alma pungente
A minha audácia igual a Prometeu.
 
Julguei vires trazer ao eu dormente
De mansinho o erguer duro do meu véu
Feito de renda, triste, languescente
Que atou cada arfar de asa que se ergueu
 
Que importa se ceguei de entontecida
Se de insana erigi toda a ilusão
Se me dei ao luar de alma rendida.
 
A vida é quebranto, enganos mil
É pois preciso ver com emoção
O haver até a brancura no anil. 

Acilda Almeida

VARZEA


VARZEA
 
Em meu pensamento
Ocorreu a ideia
Lampejo momento
Soturna plebeia.
 
São passos cruzados
Na mente submersa
Tormentos ousados
Em frases dispersa.
 
Conluios se fazem
Projectos de vida
Por eles se batem
Na várzea perdida.
 
Que selva afinal
Este labirinto
Romance espiritual
Em fogo extinto.
 
A lava candente
Britando voraz
Várzea poluente
Retrógrada sagaz.
 
Pântano perigoso
Em areias movediço
Profano ardiloso
Sem nunca se dar por isso. 

João Pessanha
2/10/2012

Entrego minha alma


Entrego minha alma
Como livro aberto
Na janela do tempo
Em tuas mãos desnudas.
Desfolha cada página
Desvenda cada imagem
Bebe em suaves tragos
Cada palavra
Desfruta cada sílaba
Aspira cada letra
Sôfrego de ternura
Inunda-me de desejos
Em silenciosos gestos
Saboreia-me sem pressa. 

Alice Santos