terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A MORTE SAIU À RUA


A MORTE SAIU À RUA

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação

José Afonso
lido por Fernando Morais

POESIA NA GALERIA 21 de Janeiro


Cristina Maya Caetano
Cristina Maya Caetano
Fernando Morais
Fernando Morais
Manoel do Marco
Manoel do Marco
Maria Augusta Silva Neves
Maria Augusta Silva Neves

Luís Pedro Viana
Luís Pedro Viana
Fernanda Garcias
Fernanda Garcias

Acilda Almeida
Acilda Almeida
Silvino Figueiredo
Silvino Figueiredo
Alzira Santos
Alzira Santos
Emília Costa
Emília Costa
Virgílio Liquiro
Virgílio Liquito
Irene Costa

Irene Costa

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

OUTONO


OUTONO

O sol desce pelas fachadas
e vem enroscar-se nas flores
depois sobe em luzes vivas
arrogantes, subversivas
até às nuvens distantes.

Quando é Outono desenha
de todas as ruas o corte
e vai montado no vento
no seu clarão de espavento
mas a luz é menos forte.


O fulcro das ideias passa pelo corpo
no qual se insere um multi-vivas formas
é por isso que às vezes encontramos flores
mais frágeis que miosótis e mais lindas que rosas.

O que perdura no corpo é memória de beleza
algum encanto misturado de prazer e suavidade
é por isso que há sorrisos tão indefiníveis
como aquela página do livro que ficou em branco

O destino que damos aos gestos perde-se no tempo
evola-se como aromas ressentidos na infância
a nossa serenidade alimenta-se de ânsia
como o ardor é moral no seu intento

As emoções também, os sentimentos perto,
tão difícil controlar, conviver nesse defeito
às vezes ponho-me a pensar e é certo
ficar tristíssimo, sem perdão, sem jeito.

Ao menos um dia gostava de saber, de me acertar
pelo relógio da vida onde o todo se faz luz
e parecido com os que parecem estar
à espera do universo que tanto nos seduz.

Sei das fontes que havia na cidade
onde a água cantava de esplendor
sei das cortinas brancas nas janelas
e das varandas floridas e pintadas.

Sei dos caminhos cheirando a resina
do lavadouro público com vozes de mulher
do ar lavado pelo Sol de Outubro
e do azeite vendido ao domicílio

Sei dos jornais tingindo as mãos de escuro
naqueles sábados de galos no quintal
e de mil insectos passeando confortavelmente
por entre o povo caminhando ao trabalho.

Sou desse tempo que revivo e não esqueço
das relações de vizinhança estremecidas
e dos hábitos de dar e receber
estreitados no espaço quotidiano.

Sei dessas noites de candeeiro na mão
a devassar as sombras do inesperado
sei do jogo do pião, do eixo e rebaldeixo
e dos poemas do ANTERO ao doce acordeão

Houve mil homens nos tempos antigos
e por cada ano passado mais mil de mil
que fizeram das pedras mudas coisas vivas
e dos campos lavrados rendas de bilros

Na história dos povos anda sempre viva
a enorme apetência de deixar marcas
e para além da morte ficar gravado
nosso símbolo de poder e força

O canto dos pássaros riu-se imponente
no som mavioso nos trinados suaves
de tanta batalha no sangue perdida
com tanto chorar já tardio, distante

Qual o homem desses tempos remotos
que pôde adivinhar a minha chegada
e do que eu diria, faria, pensasse
ao dobrar a vida como uma esquina?

O silêncio que desfez a máquina do tempo
e a aparente serenidade do passado
flirta connosco o cadáver esquisito do futuro
nas expressões de pânico dos actuais letrados

Dizem que tudo vai ser pior, pior mil vezes
e que os nossos netos vão sofrer de tudo
A ciência, entretanto, vai-se rindo à sucapa
inconsciente da moral e do bem estar perdido

A cidade falida, desfeita em fumos, nivelada
exposta aos furacões dos recibos por pagar
tritura-se, suicida-se, para passar nas ruas
e deixa rastos de sangue nas praças policiadas

O calor quando cai arrasa tudo por demais
a chuva quando engrossa arrasta casas e casais
os ricos mais ladrões roubam-se uns aos outros
porque o frio desde há muito matou todos os órfãos

Nesta tragédia global aparece o dois mil
dizendo que basta um sorriso da beldade
para que o Mundo fique em plena primavera
no farfalhar das notas que o banco nos entrega.

Será que é assim o mundo? Que não há mal que dure?
Será que é assim a vida? Que todo o fogo extingue?
Toda a velhice acalme e toca a doença cure?
E todo o crime se esqueça e já ninguém se vingue?

OXALÁ!

Os meus poemas
ficaram vivos tantos anos, tanto tempo
abandonados, desconhecidos,
e sem correr, pernas pequenas,

Os meus poemas
sem viajar pelas antenas
apenas vivos, vivos apenas
de tão parados, de tão retidos,
ganharam pó, cresceram penas
tanto penaram a sós comigo…

De mim fugiu até a grande esperança
a do bem estar dos povos e a do meu
que, vendido ao dinheiro, já tudo perdeu
Desiludido fugi, então, para França

O doloroso percurso fi-lo várias vezes
e em nenhuma delas vi a felicidade
o bem que procurava era em verdade
fugir das minhas próprias fraquezas

O debate principal no mundo continua
a ser entre quantidade e qualidade
quando uma sobe a outra cai na rua
e quando cai desfaz-se em nulidade

Ninguém quer o que tem mas o que anseia
ninguém anseia ter menos que o vizinho
 e por isso o meu povo só a lua tem cheia
e em tudo o resto, um pouco, poucochinho…

O mal que virmos, a nós, não nos faz bem
e a aflição dos outros será nossa aflição
ligados todos, contra vontade, siameses
na sociedade que fizemos de ambição

O professor Agostinho bem o disse e com clareza
temos um destino para sermos dignos dele
mas nos últimos setenta anos de avareza
só tivemos em Abril… e foi aquele.

ao Mário Cláudio

Com quanta agitação se satisfaz o anseio
e as larvas vivem na ignorância do belo
mas se na vida nada do que existe é feio
porquê, então, tanto choro, lamentações, desvelo?

O sumo da existência é tirar sabedoria do pouco
a corrida para o tudo é ineficaz e absurda
O pouco é tanto no que em si encerra
que o muito de tudo é o que na vida muda.

Não há essência das coisas senão no pensamento
nem sujeição que não traga a revolta
a flor dos dias é o amor à forma do vento
sabendo nós como o vento se forma.

Já tenho dores nos olhos
de tanto ver o egoísmo
e tremo de nervosismo
de sentir a intolerância

A ganância que faz no mundo
tornou o solo infecundo
destruiu a agricultura
e a grua invadiu tudo.

Já tenho dores nos olhos
tremo de nervosismo
de ver tanta intolerância
que, neste mundo, a ganância,
tornou o solo infecundo.

As gruas crescem na terra
que era da agricultura
como sementes de fome
onde sorria a fartura.

A luz é vista pelos meus olhos
senão, para mim, não existia
mas tu, querida, mesmo sem te ver
existes. Quando toco, palpo, a harmonia.

Quando te sinto a pele e estremeces
insuflas de vida o peito meu, raso.
Nem tudo na velhice é um descaso
quando a memória de ser novo me esclareces.

até os versos doem de ser vistos
na página do livro que floresce
e a luz que dele sai é o artigo
mais raro e caro que no mundo cresce.

Fernando Morais
in "O Poeta Escondido"

sábado, 14 de janeiro de 2012

O POEMA DE NOS AMARMOS


O POEMA DE NOS AMARMOS

Quando não estás comigo
oiço o eco dos teus passos,
sinto um frio…um desabrigo…
sem o calor dos teus braços!

Corda de harpa em tensão
é a minha consciência;
não suporta a solidão
que me vem, da tua ausência.

E porque assim nos amamos?
Que mistério nos atrai,
que até se nos separamos,
meu sentir contigo vai?

Talvez porque o mar existe
e porque a terra o corteja…
A mesma atracção assiste
a quem se ama e deseja.

Talvez porque sol e lua
andem no céu se cruzando,
e até a pedra da rua
anda co chão namorando.

Talvez sejas a corrente
deste rio em que parti,
e eu, confiadamente,
me deixo levar por ti.

Talvez porque a nossa sorte
já decretou, ao nascermos,
seguirmos o mesmo norte,
os mesmos vales terrenos.

A minha ambição presente
é morrer a ti abraçada,
pois se partes à minha frente
no mundo não sou mais nada!

Mas esta minha vontade,
me forma no peito um nó…
partir com tal soledade,
sabendo que morres só?

Ai meu amor que dilema!...
Fragilidade que mata!
Nossa vontade plena
é ir na mesma fragata!

Se nossos corações em vida
batem unissonamente,
seria bom, na partida,
juntos deixar de ser gente!
                           
Maria de Lourdes Moreira Martins
in “Castelo de Legos”

onde um lado é verde azul


onde um lado é verde azul
espuma pedra e sal
sobra nos lábios o poema
do canto das gaivotas

onde um lado é flauta de brisa
estende-se o hálito fresco
pelas artérias das planícies
e o perfume solar.
deitado sobre todos os verbos
é transfusão de seiva
confluente divino a acariciar
o rasto da salvação

onde vibra em perfeição activa
hastes de aromas e sabores
os arranjos florais desenhados no horizonte
assumem o poder do pulmão

onde os olhos das aves viajam em asas de alegria
veste-se o céu para sorrirem rios
e favos de esperança cobrem a floresta
onde se descobrem mariposas a remover a vida

de joelhos liberto segredos confiados às estrelas
reparto-me nos afluentes do amor
invoco cortejos de preces
fico grávida de contemplação
no silêncio crepuscular

sobra nos lábios o poema
porque as palavras crescem
mas… são pequenas para te louvar.
                     
Teresa Gonçalves
in “pleno verbo”

PARA QUÊ

Porfírio Alves Pires, in: www.galeriavieiraportuense.com
PARA QUÊ

Trabalhas, homem, nessa aparelhagem
que te dá mundos de comodidade
e que te leva, como a fresca aragem
na asa encantada da velocidade…

Trabalhas, lutas, buscas na miragem
feita de luz e viva claridade
um reino imaginado à tua imagem
de fulgurante materialidade…

Trabalhas tanto e desprezivelmente
preso ao trabalho, o coração e a mente
continuarão em plena escuridão.

E sem saberes o que és, meu presunçoso,
contente no teu meio aparatoso,
chamas a isto civilização…
            
Oliveira Guerra
in Algemas

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

UM PRESÉPIO SÓ DE HISTÓRIAS


UM PRESÉPIO SÓ DE HISTÓRIAS

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da minha aldeia natal!...

… feito de caixas e pedras
e vegetação natural
que os rapazes pediam
em casa dos grandes senhores
da Boavista e do Ribeiro:
gente rica e afidalgada
que morava nos arredores
e possuía enormes quintas,
de que recebi proventos
entregues pelos rendeiros.

Cedros,
ciprestes, pinheiros,
trazidos em procissão,
não eram nunca demais
para embelezar o lugar
do Menino Deus nascer.
Todos os anos nascia
em modesta condição
e se abria
em sorrisos de bondade
que dirigia aos pequenos,
aos fracos e aos enfezados
e a todos os necessitados que,
afinal,
na sua humildade,
se abeiravam do presépio
nesta quadra de Natal.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da terrinha em que nasci!...

… atapetado a musgo,
com areia a fingir estradas
onde bonecos de feira
a rir,
de faces rosadas,
tudo faziam para assistir
aos mistérios que envolviam
as personagens sagradas!
Havia poucas figuras,
muitas das quais emprestadas,
não tendo até nada a ver
com as histórias narradas
em páginas das Escrituras.

Mas havia uma grande estrela
a brilhar lá nas alturas,
recortada em papelão
e forrada a pratas velhas
que as crianças descobriam
em maços de cigarros vazios
e abandonados no chão.
Com o sol a dar de frente
a despertar-lhe faíscas
toda era incandescente.
Era obra do Ti Vicente,
pessoa boa, de linhagem,
a quem a ociosidade
conduzira à beberagem:
o maior bêbado da aldeia,
mas com laivos de instrução!
Era o mais hábil também
em desenhos a carvão,
a fazer caricaturas
e outros trabalhos manuais
como moldar bem o pão
para dele extrair figuras:
ovelhas e cabras crescidas
cabritos e cordeiros também
que os pastores apascentavam
nas cercanias de Belém.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
dos tempos da minha infância!

Em todo o cimo do monte
ficava assente o castelo
de portões sempre cerrados!
E já fora das muralhas,
alguns canhões alinhados
prontos a fazer fogo… e apontados
nunca descobri para onde
nem contra quem.
Mas sei bem
que era o castelo de Herodes
que o Figas Velho fizera
quando estava na prisão
por causa de umas ferramentas
que nunca lhe pertenceram,
mas que estavam em sua mão!
Não havia Herodes nenhum
a morar naquele castelo.
- Que tinha lá que fazer
o odiento sanguinário?
E se algum dia lá fosse
teria de fugir depressa,
que as pessoas bem sabiam
daquela cruel matança
e, ciosos das crianças,
não se deixariam enganar
por tal peça!

Também havia quem dissesse
Que o castelo era dos Magos
que nunca ninguém ali vira
a não ser nalgum postal
que o Zé Quim da Zulmira,
a trabalhar em Lisboa,
enviava nesta quadra
a desejar Festas Felizes
e saudinha da boa.

E os Magos eram três e,
numa aldeia pequena
não há posses, nem casas em condições
para acomodar tal realeza!
- E os camelos? Com aquele tamanho todo,
onde iriam pernoitar?
Os estábulos eram pequenos
e ao relento, cá fora,
nem pensar!
Assustariam os cães, os burros
e os bois, úteis para ajudar
no amanho dos terrenos!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu era pequeno!...

Que beleza, aquele riacho
quando estava a funcionar!
Nascia num pequeno pipo,
escondido atrás das heras,
quando o filho do Tónio Pereira,
sem ninguém se aperceber,
dava uma volta à torneira!
Vinha desaguar cá em baixo,
num grande lago de zinco:
uma banheira emprestada
já bastante enferrujada
e com pingos de solda no fundo.
O riozinho cantarolava
(como ainda o ouço bem!)
num leito de telhas velhas
do tecto da sacristia
de onde tinham sido tiradas
sem o Padre João saber!
Naquela banheira de zinco
nadava o peixe vermelho
da Luísa do Carpinteiro
maior que os submarinos de apito
emprestados pelo Moleiro.

Uma pequena incongruência
que não afectava ninguém,
como outras que ali havia,
o que em nada impedia
aquela gente de recordar
os acontecimentos de Belém.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu andava por ali!...

A reflectir-se no lago,
o pinheiro de Natal,
nórdico, aprumado, formal,
não ofendia a fé cristã,
pois a tolerância entre credos
era prática usual.
Quem o enfeitava era a Dores
com algodão a fingir neve
e pratas de chocolate
guardadas do ano passado
entre as páginas amarelecidas
de um caderno engelhado.

Acomodada num galho,
uma arara graciosa,
altiva, de rica plumagem,
chocava ovos de amêndoa
num ninho que não era seu.
E, segura por arame, não fosse às vezes cair,
uma caixa do correio
gritava, lá mesmo em cima,
a sua cor encarnada
com letras a reluzir:
era um velho mealheiro
já com a lata amolgada
que não guardava moedas,
mas a esperança de que se enchesse
para comprar algo de jeito
na próxima feira que houvesse!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu era criança!

Não havia coro de anjos
da corte celestial,
mas pelos degraus do castelo
de farda azul, a rigor,
e de faixa a tiracolo
desciam músicos de Barcelos,
para louvar o Senhor.
Que hinos eles entoavam
com os instrumentos partidos
(um deles já nem braços tinha),
mas a imaginação infantil
punha música nos ouvidos!

O Menino nas palhinhas
estava só,
órfão de Pai e de mãe,
que a Virgem e S. José
não existiam também.

E ainda bem,
que Jesus veio dar o exemplo
aos filhos de pai incógnito,
que naquela altura havia;
e aos que já não tinham mãe,
vítimas de doença grave
carência de trato ou carinho;
e até aos que apesar
de o pai e a mãe não faltarem
lhes minguava o aconchego:
a luta diária da vida
fazia-os vencer o medo
de se entreterem sozinhos.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
que me fica tão distante!...

À parte Jesus Menino
e a estrela que o iluminava,
nada mais ali havia
que se ajustasse ao cenário
da santa maternidade!
Tudo era extravagante,
sem condizer com Belém:
o pavão de celulóide,
a caixinha pendurada,
a arara tropical e os
carros de lata na estrada;
um avião a sobrevoar,
os submarinos no lago e a
magia do momento
em que a harmonia da música
não era de nenhum instrumento!

Mas o presépio era lindo
aos olhos dos mais pequenos.
Bem sabiam que não interessa
Deus vir ao mundo na Pérsia,
no Egipto ou no Japão,
em Itália ou na Judeia,
na Rússia ou no Afeganistão!
Também sabiam, há muito,
que nascer num humilde estábulo,
num sumptuoso palácio,
ao frio de uma garagem
ou num apartamento moderno
não faz diferença nenhuma!
As crianças desse tempo
tinham a perfeita intuição
que onde Jesus devia nascer
era dentro das pessoas,
na alma e no coração!
Aí é que se arma o verdadeiro presépio!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da minha aldeia natal!...

                            Miguel Leitão
in Em nome das palavras