quarta-feira, 14 de julho de 2010

VIAJANDO NO 70 OU TALVEZ NO 803





Nunes Amaral
Eléctrico I
Acrilico s/tela
100 X 65 cm

VIAJANDO NO 70 OU TALVEZ NO 803

Dra. Maria de Lourdes dos Anjos

O Porto começa a esvaziar-se. No Bolhão, o trânsito não se aguenta.
Uma multidão vai entrando, ordeiramente, no autocarro das dezasseis e cinquenta.
Marcam o passe os que partiram de casa, de madrugada, para trabalhar
E regressam desanimados, esbaforidos, mortinhos por descansar.
Os que andaram toda a tarde, no Porto, a ver as montras
E nos primeiros lugares se alapam,refestelados, como lontras.
Os que foram fazer análises à diabetes e "tantas" radiografias...
E depois falam de doenças,remédios, chás e bruxarias.
De pé, um jovem que moldou o cabelo em forma de penacho
Com as cuecas à mostra e as calças pelo rabo abaixo.
O homem negro que chamaram para uma entrevista qualquer,
Fala ao telemóvel e rabuja contra o governo e contra a mulher
Um fulano, sem dentes, cheirando a vinho que tresanda,
Acompanha os solavancos do pára, arranca e anda...
A menina provocante do centro comercial, vai muito sisuda,
Lendo, na revista das telenovelas, o horóscopo que não muda.
A jovem adolescente, de tatuagem no pescoço,impregnada de perfume,
Leva as hormonas aos saltos e sente-se o sexo em lume.
No autocarro seguem o politiqueiro, o fala barato e o treinador de bancada.
Conhecem meio mundo, falam pelos cotovelos mas dizem pouco ou nada.
O pai da " estudanta" que foi praxada pela noite dentro,coitadinha...
Fala, todo gabarola, dos projectos de doutora da sua filhinha.
A Diana Vanessa, no colo da avó, dá pontapés,faz birra e chora
E a mãe, enervada,ameaça de a mandar pela porta fora
No cruzamento, o motorista dá uma tocadela ao tipo da motorizada
O senhor de blusão de couro e fio de ouro ao peito diz:É tudo uma canalhada!
A senhora de canadianas desequilibra-se e solta um palavrão
O velhote gordo ri-se mas salta do seu lugar e deita-lhe a mão
No banco do fundo, segue a senhora que sabe tudo de toda a gente
Fala de quem se divorciou, de quem tem calotes no talho e de quem morreu infelizmente...
Um catraio pousa a mochila e encosta a cabeça à janela
Passa pelas brasas, a viagem faz-se e ele nem dá por ela
No Bonfim, sem gente para entrar, a paragem não se faz
Então, ouve-se de repente:oh senhor motorista, olhe a porta de trás!
Este autocarro transporta os fardos que as vidas carregam
É o retrato fiel da educação e dos direitos que ao povo negam
Parte, a meio da tarde, com destino ao fim do mundo
Leva corpos gastos,olhos baços e almas cheias de Portugal profundo
Segue pelas ruas da amargura, apinhado de gente e cheio de solidão
Cumpriu o horário o autocarro que,às dezasseis e cinquenta, saiu do Bolhão.
M. de Lourdes dos Anjos

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