Aristides Meneses
A LÁGRIMA
Manhã de Junho ardente. Uma encosta escalvada,
Seca, deserta e nua, à beira de uma estrada.
Terra ingrata, onde a urze a custo desabrocha,
Bebendo o sol, comendo o pó, mordendo a rocha.
Sobre uma folha hostil de uma figueira-brava,
Mendiga que se nutre a pedregulho e lava,
A aurora desprendeu, compassiva e divina,
Uma lágrima etérea, enorme e cristalina.
Lágrima tão ideal, tão límpida que, ao vê-la,
De perto era um diamante e de longe uma estrela.
Passa um rei com seu cortejo de espavento,
Elmos, lanças, clarins, trinta pendões ao vento.
- No meu diadema, disse o rei, quedando o olhar,
Há safiras sem conta e brilhantes sem par,
Há rubis orientais, sangrentos e doirados,
Como beijos de amor a arder, cristalizados.
Há pérolas que são gotas de água imensa,
Que a Lua chora e verte e o mar gela e condensa.
Pois brilhantes, rubis e pérolas de Ofir
Tudo isso eu dou, e vem, ó lágrima, fulgir
Nesta coroa orgulhosa, olímpica, suprema,
Vendo o globo a meus pés do alto do teu diadema!
E a lágrima celeste ingénua e luminosa
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Couraçado de ferro, épico e deslumbrante,
Passa no seu ginete um cavaleiro andante.
E o cavaleiro diz à lágrima irisada:
- Vem brilhar, por Jesus, na cruz da minha espada!
Far-te-ei relampejar, de vitória em vitória,
Na Terra Santa, à Luz da Fé, ao sol da glória!
E à volta, há-de guardar-te a minha noiva, ó astro,
Em seu colo auroreal de rosa e de alabastro.
E assim alumiarás com teu vivo esplendor
Mil combates de heróis e mil sonhos de amor!
E a lágrima celeste ingénua e luminosa
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Montado numa mula escura, de caminho,
Passa um velho judeu, avarento e mesquinho.
Mulas de carga atrás levam-lhe o tesoiro,
Grandes arcas de cedro abarrotadas d'oiro.
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O crânio calvo, o olhar febril, o bico adunco,
Vendo a estrela exclamou: - Ó Deus que maravilha!
Como ela resplendece e tremeluz e brilha!
Com meu oiro em montão podiam-se comprar
Os impérios dos reis e os navios do mar.
E por esse diamante esplêndido trocara
Todo o meu oiro imenso a minha mão avara!
E a lágrima celeste ingénua e luminosa
Ouviu, sorriu, tremeu, e quedou silenciosa.
Debaixo da figueira então um cardo agreste,
Já ressequido, disse à lágrima celeste:
- A terra onde o lilás e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.
Se, a queixar-me, ergo ao céu os braços por acaso,
O céu manda-me em paga o fogo em que me abraso.
Nunca junto de mim ranchos de namoradas
Debandaram, cantando, em noites estreladas...
Voa a ave no azul e passa longe o amor,
Porque ai! nunca dei sombra e nunca tive flor!...
Ó lágrima de Deus, ó astro, ó gata d’água,
Cai na desolação desta infinita mágoa!
E a lágrima celeste ingénua e luminosa
Tremeu, tremeu, tremeu… e caiu silenciosa.
E algum tempo depois o triste cardo exangue,
Reverdecendo, dava uma flor cor de sangue;
Dum roxo macerado e dorido e desfeito,
Como as chagas que tem Nosso Senhor no peito...
E ao cálice virginal da pobre flor vermelha
Ia buscar, zumbindo, o mel doirado a abelha!
Guerra Junqueiro
lido por Miguel Leitão
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