O Cristo, ao alto, alonga os magros braços nus
Por sobre a escuridão do rancho desolado
Que segue, ao som da marcha, o seu Jesus,
Por nós crucificado.
Pendente da cruz negra, envolto em luar frio,
Tremendo, ao baloiçar do seu pesado andor,
No corpo nu perpassa um arrepio
De carne e de terror…
E, vivo ainda, o Cristo espasma e agoniza,
E avança, ao avançar da lenta procissão…
A lua é uma auréola indecisa
Molhando a multidão.
À frente, já lá vão, sangrentos, mais Senhores,
Sangrentos, e poisando subtilmente os pés feridos
Nos ricos panos roxos dos andores,
Entre círios erguidos.
Senhor da Cana Verde erguendo o olhar absorto,
(Verónica sem par! Deus feito pele e osso!)
Seu cepto da Paixão nas mãos de morto,
Sua púrpura ao pescoço.
Senhor da Pedra Fria ao poste acorrentado,
Com pálpebras sem luz pesadas como noites,
O corpo retalhado e tatuado
Dos beijos dos açoites.
Senhor dos Passos indo a Via da Amargura,
De túnica aos rasgões mas toda em seda roxa,
E oculta sob a Cruz, a face escura
Pesando lassa e frouxa…
E as tochas, e os brandões, e as opas mortuárias
Desfilam devagar, fantasmas desfilando…
As criancinhas levam luminárias,
A marcha vai penando.
Crianças a sorrir no enterro de Jesus! ...
(Nas luminárias, sobre fundos amarelos,
Trazem toda a Paixão: a esponja, a cruz,
Os cravos, os martelos …)
E eu sinto, agora, um mundo contra o peito,
E olhando o Cristo, ao som da marcha de aflição,
Vou, cheio de soluços, contrafeito
Entre esta multidão.
Toda a emoção doentia, obscura e torturada
Que fez de mim Poeta irrompe e vibra… Coro,
Gozando essa volúpia inesperada
De reparar que choro.
Que bom, poder chorar só por amar!
E olhando o roxo azul dos seus joelhos nus,
Medito em me ir também crucificar
Nos braços duma Cruz!
A ti me atrai, Jesus, mais forte que um abismo,
A chama desse amor que a fogo lento coze
As virgens desvairadas de histerismo
E os santos de nevrose.
Mas o que eu amo em ti, divino Cristo exangue,
É o que em ti é Dor, e assim a nós te irmana:
Teu sonho imenso, o teu suor de sangue,
A tua carne humana…
E o Cristo avança, à lua, esplêndido e chagado.
Jesus, Deus da Paixão, sim, amo-te, Jesus!
Oh, ser, por teu amor, crucificado
Na tua mesma Cruz!...
Por isso choro em mim a mágoa verdadeira
De ter nascido tarde, e só te vir achar,
Feito em marfim, metal, pedra, madeira,
No cimo dum altar!
E enquanto a marcha expira, além, num estertor,
E o magro Cristo nu vai a desaparecer,
Deliro, e sofro, e gozo a minha Dor
- Meu último Prazer!
José Régio,
Poemas de Deus e do Diabo
lido por Miguel Leitão
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