quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

UM PRESÉPIO SÓ DE HISTÓRIAS


UM PRESÉPIO SÓ DE HISTÓRIAS

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da minha aldeia natal!...

… feito de caixas e pedras
e vegetação natural
que os rapazes pediam
em casa dos grandes senhores
da Boavista e do Ribeiro:
gente rica e afidalgada
que morava nos arredores
e possuía enormes quintas,
de que recebi proventos
entregues pelos rendeiros.

Cedros,
ciprestes, pinheiros,
trazidos em procissão,
não eram nunca demais
para embelezar o lugar
do Menino Deus nascer.
Todos os anos nascia
em modesta condição
e se abria
em sorrisos de bondade
que dirigia aos pequenos,
aos fracos e aos enfezados
e a todos os necessitados que,
afinal,
na sua humildade,
se abeiravam do presépio
nesta quadra de Natal.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da terrinha em que nasci!...

… atapetado a musgo,
com areia a fingir estradas
onde bonecos de feira
a rir,
de faces rosadas,
tudo faziam para assistir
aos mistérios que envolviam
as personagens sagradas!
Havia poucas figuras,
muitas das quais emprestadas,
não tendo até nada a ver
com as histórias narradas
em páginas das Escrituras.

Mas havia uma grande estrela
a brilhar lá nas alturas,
recortada em papelão
e forrada a pratas velhas
que as crianças descobriam
em maços de cigarros vazios
e abandonados no chão.
Com o sol a dar de frente
a despertar-lhe faíscas
toda era incandescente.
Era obra do Ti Vicente,
pessoa boa, de linhagem,
a quem a ociosidade
conduzira à beberagem:
o maior bêbado da aldeia,
mas com laivos de instrução!
Era o mais hábil também
em desenhos a carvão,
a fazer caricaturas
e outros trabalhos manuais
como moldar bem o pão
para dele extrair figuras:
ovelhas e cabras crescidas
cabritos e cordeiros também
que os pastores apascentavam
nas cercanias de Belém.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
dos tempos da minha infância!

Em todo o cimo do monte
ficava assente o castelo
de portões sempre cerrados!
E já fora das muralhas,
alguns canhões alinhados
prontos a fazer fogo… e apontados
nunca descobri para onde
nem contra quem.
Mas sei bem
que era o castelo de Herodes
que o Figas Velho fizera
quando estava na prisão
por causa de umas ferramentas
que nunca lhe pertenceram,
mas que estavam em sua mão!
Não havia Herodes nenhum
a morar naquele castelo.
- Que tinha lá que fazer
o odiento sanguinário?
E se algum dia lá fosse
teria de fugir depressa,
que as pessoas bem sabiam
daquela cruel matança
e, ciosos das crianças,
não se deixariam enganar
por tal peça!

Também havia quem dissesse
Que o castelo era dos Magos
que nunca ninguém ali vira
a não ser nalgum postal
que o Zé Quim da Zulmira,
a trabalhar em Lisboa,
enviava nesta quadra
a desejar Festas Felizes
e saudinha da boa.

E os Magos eram três e,
numa aldeia pequena
não há posses, nem casas em condições
para acomodar tal realeza!
- E os camelos? Com aquele tamanho todo,
onde iriam pernoitar?
Os estábulos eram pequenos
e ao relento, cá fora,
nem pensar!
Assustariam os cães, os burros
e os bois, úteis para ajudar
no amanho dos terrenos!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu era pequeno!...

Que beleza, aquele riacho
quando estava a funcionar!
Nascia num pequeno pipo,
escondido atrás das heras,
quando o filho do Tónio Pereira,
sem ninguém se aperceber,
dava uma volta à torneira!
Vinha desaguar cá em baixo,
num grande lago de zinco:
uma banheira emprestada
já bastante enferrujada
e com pingos de solda no fundo.
O riozinho cantarolava
(como ainda o ouço bem!)
num leito de telhas velhas
do tecto da sacristia
de onde tinham sido tiradas
sem o Padre João saber!
Naquela banheira de zinco
nadava o peixe vermelho
da Luísa do Carpinteiro
maior que os submarinos de apito
emprestados pelo Moleiro.

Uma pequena incongruência
que não afectava ninguém,
como outras que ali havia,
o que em nada impedia
aquela gente de recordar
os acontecimentos de Belém.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu andava por ali!...

A reflectir-se no lago,
o pinheiro de Natal,
nórdico, aprumado, formal,
não ofendia a fé cristã,
pois a tolerância entre credos
era prática usual.
Quem o enfeitava era a Dores
com algodão a fingir neve
e pratas de chocolate
guardadas do ano passado
entre as páginas amarelecidas
de um caderno engelhado.

Acomodada num galho,
uma arara graciosa,
altiva, de rica plumagem,
chocava ovos de amêndoa
num ninho que não era seu.
E, segura por arame, não fosse às vezes cair,
uma caixa do correio
gritava, lá mesmo em cima,
a sua cor encarnada
com letras a reluzir:
era um velho mealheiro
já com a lata amolgada
que não guardava moedas,
mas a esperança de que se enchesse
para comprar algo de jeito
na próxima feira que houvesse!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
de quando eu era criança!

Não havia coro de anjos
da corte celestial,
mas pelos degraus do castelo
de farda azul, a rigor,
e de faixa a tiracolo
desciam músicos de Barcelos,
para louvar o Senhor.
Que hinos eles entoavam
com os instrumentos partidos
(um deles já nem braços tinha),
mas a imaginação infantil
punha música nos ouvidos!

O Menino nas palhinhas
estava só,
órfão de Pai e de mãe,
que a Virgem e S. José
não existiam também.

E ainda bem,
que Jesus veio dar o exemplo
aos filhos de pai incógnito,
que naquela altura havia;
e aos que já não tinham mãe,
vítimas de doença grave
carência de trato ou carinho;
e até aos que apesar
de o pai e a mãe não faltarem
lhes minguava o aconchego:
a luta diária da vida
fazia-os vencer o medo
de se entreterem sozinhos.

Como era lindo
o presépio pobrezinho
que me fica tão distante!...

À parte Jesus Menino
e a estrela que o iluminava,
nada mais ali havia
que se ajustasse ao cenário
da santa maternidade!
Tudo era extravagante,
sem condizer com Belém:
o pavão de celulóide,
a caixinha pendurada,
a arara tropical e os
carros de lata na estrada;
um avião a sobrevoar,
os submarinos no lago e a
magia do momento
em que a harmonia da música
não era de nenhum instrumento!

Mas o presépio era lindo
aos olhos dos mais pequenos.
Bem sabiam que não interessa
Deus vir ao mundo na Pérsia,
no Egipto ou no Japão,
em Itália ou na Judeia,
na Rússia ou no Afeganistão!
Também sabiam, há muito,
que nascer num humilde estábulo,
num sumptuoso palácio,
ao frio de uma garagem
ou num apartamento moderno
não faz diferença nenhuma!
As crianças desse tempo
tinham a perfeita intuição
que onde Jesus devia nascer
era dentro das pessoas,
na alma e no coração!
Aí é que se arma o verdadeiro presépio!

Como era lindo
o presépio pobrezinho
da minha aldeia natal!...

                            Miguel Leitão
in Em nome das palavras

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