terça-feira, 16 de agosto de 2011

VERMELHO E PRETO


VERMELHO E PRETO

No raio de sol no calor do lume
na brasa acendida do aceso amor
perpassa às vezes um súbita frio
apesar do fervor no finíssimo gume

Apesar do horror da pretíssima noite
distingue-se às vezes por entre o negrume
um fogo vivo devorando aflito
a sua própria cor…

Esconde, esconde amor estas palavras
o amor que nos une é clandestino
porque hoje a ternura é coisa rara
e tem inimigos à esquina

Esconde, amor, o nosso amor
que é transgressor da vida das viaturas
feita de fumos e lixo deitado à rua
e a ternura não é bem vista nem aceite

Esconde amor que estás feliz amando
agora só quem mata plantas, fere rios
tem o direito de falar e circular
e esses são os donos das cidades

Por isso esconde já os nossos versos
e as mensagens de carinho que trocamos
os automóveis matam, gazeiam
escurecem o mundo onde estamos

Uma frase doce ciciada ao ouvido
ou dita de olhos nos olhos penetrante
com aquela chama calma e sedutora
como é próprio do humano ser querido

Uma palavra assim doce e perfeita
já não se houve no planeta inteiro
porque o som das viaturas é única colheita
de ruídas, no actual viver, cruel, grosseiro

Tanta falta nos faz a doçura da harmonia
que a nossa vida sem ela é insana
e por isso digo aqui em voz baixinho
amor, amor, suave luz, terna alegria…

Com este ritmo coisas, dos gestos
as indiferenças partidas ao meio
e o Universo repleto cada vez mais cheio
das palavras obscenas que se dizem na Terra

No meio das galáxias até já fazem furor
tantas palavras feias que se dizem por cá
e os pobres planetas têm de escutá-las
sem nada terem feito para um tal castigo

As palavras circulam por esse espaço fora
ferindo os átomos em perceptíveis sons
Mostram o que somos, nem maus, nem bons
sons de palavras dum povo que chora.

Com as mãos que temos e que o Sol nos deu
para bater palmas aos nossos locutores
com essas mãos cuidamos de rosas no quintal
e embalamos as crianças dos primeiros dias

Com estas mãos fizemos cordões no 1.º de Maio
e dançamos ao luar da bendita esperança
com elas não devemos alimentar a usura
dos vazios da ideia, campeões da incultura.

Em Setembro cultivei os tempos livres
para alcançar gaivotas sobre o rio
depois, já cansado retirei as asas
e fui pendurá-las num armário

Daí me veio a queimadura de voar
que se insinua pelos dedos onde há unhas
onde sólidos penedos pressupunhas
serem esculturas de homens de outras eras

Em Setembro, porém, cresci todas as tardes
que eram feitas do bolor dos dias
nem sei se ri por dentro ao tocá-las
só sei que se desfizeram nos meus dedos

Em Setembro ouvi música curativa
foi do mais barato que Setembro deu
a quem estava de partida

Donde vem esta luz, este oásis
do Capital, selvagem, triturador
com que engana os papalvos, os ignaros
basbaques das lantejoulas, do circense,
deslizando no visco lisbonense?

Donde vem esta fúria de comprar
este odor mecânico dos berloques
poluição mental e nauseabunda
destes humanos a reboques
em servidão perpétua e tão profunda?

Donde vem?

Apenas o silêncio me acalma e ilumina
apenas a amargura me dá forças
não consigo perceber a alegria
nem sei que fluxo ri quando se riem.

Donde vem a tristeza isso sei eu
que o Norte tinha com tanta impertinência
ainda era novo e ria na minha adolescência
E agora? Porquê esta amargura? Quem ma deu?

O tempo que passou, as rugas que tão bem se lêem,
é apenas tempo. São apenas rugas
os anos que as fizeram, esses, não se vêem
ficaram lá atrás desfeitos nas alturas.

Agora vivo com o que o Sol me dá
e a apatia quer vingar por dentro dos meus dias
mas eu luto e ferro-me para trincar as frias
alvoradas de inverno. Ora aí está!

Plantamos as ruas, as avenidas
no meio das antigas quintas e pomares
plantamos prisões de cimento e vidro
onde só dormimos pesadelos.

Afogamos a vida com recibos e facturas
inundamos a existência com venenos
de automóveis que chocam uns nos outros
e não vão nunca ao seu destino.

Fritamos as tardes com lixos e dejectos
e emporcalhamos as árvores que restam
com sacas de plástico e ruídos.

Deixamos os filhos neste inferno
sem presente, sem futuro, sem memória
a caixa registadora dá as horas
e os pneus rebentam sem estrondo.

As carcaças dos pobres povoam-se de vermes
e a bandeira nacional ondeia esburacada
ninguém sabe cantar o nosso hino
nem os acordes de Grândola Morena
mas sabem onde comprar o pó
de todos os suicídios colectivos.

Que podia eu fazer senão escrever poesia
como asceta dos sonhos irrelevantes
e burilador de fatais imposturas?

Que podia eu fazer além de imaginar o livro
chamando baixinho no meu quarto às escuras
por um momento desses que são ouro de lei
e que surgem às vezes sem se saber como?...

Ao segredo das curvas, ao sorriso
corpos em movimento que adoçam a paisagem
e as formas juvenis que dançam, que volteiam
riscando o ar de luzes e imagens…

Ao livro aberto sobre a praia reluzente
ao olhar da criança solitário e penetrante
a realidade é feita do que é movente
e só os olhos falam a suprema linguagem…

Fernando Morais
in O Poeta Escondido

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