quinta-feira, 24 de maio de 2012

CARTA A DANIEL FILIPE.


CARTA A DANIEL FILIPE.

Para ti, Lá na distância tão distante tão longe, longe.

Perdoa-me este chamar-te,
este acordar-te do teu sono;
Perdoa-me por favor.
- AGORA e AQUI mas tão tarde,
entendo a tua mensagem, os teus desabafos
Como lamento os momentos tão mal vividos
e ainda os que não vivi.
Só agora alcanço o sentido, e o sofrimento contido
quando dizias: - “Estou farto!”,
Perdoa-me mas estas palavras faziam-me impressão,
Eu julgava que ser bom, ser sensível, ser inteligente,
Ser poeta era tudo.
Julgava eu ser exagero a dor posta no papel,
Quase que feria os meus olhos, os meus ouvidos de pobre menina,
tão pobre e tão estupida como analfabeta.
- Assim não podia entender que,
alguém além de mim dissesse:
“Estou farto” mas…. AGORA e AQUI já te compreendo,
Já sei o que tu querias dizer-me quando dizias: - “Estou farto”
E eu não te entendia.
Perdoa-me por só agora te dizer, o que então te podia ter dito e não soube:
- “Estou farta”,
Farta de tanto cansaço, de tanto esperar coisa nenhuma,
De tanta miséria que me cerca, Meu Deus!
… e assim continuo eu que não sou EU
e pasmo como tudo segue igual, impassível
sem que nada nos toque,
sem que os outros sintam ou vejam a tortura que sinto nos outros,
e em MIM.

- Tudo segue igual, o mar é sempre mar,
e eu continuo a esperar que o mar seja alguém!
- As árvores são sempre árvores,
e eu continuo a esperar que alguém seja árvore que em mim cria raízes!
- Tudo segue igual, nada se modifica, por exemplo:
            - a guerra tornar-se paz,
            - a dor em alegria,
            - a fome tornar-se em pão,
            - a desesperança em esperança.
- Tudo segue igual,
            até faço amor como os outros,
            até vou às compras, ao cinema
            caminho pelas ruas, a ver a agitação, azáfama dos outros,
            o atropelarem-se uns aos outros na vã tentativa
            de chegarem primeiro seja ao que for onde for
                                                           (parecem abutres)
            e… e então são pisadelas, encontrões, apalpões e perdões…
            e lixe-se o parceiro “antes ele que eu”
            (pensa aquele senhor gordo só pança, só unto de tanta fartura)
Estou farta!
Farta cansada
Cansada de muito esperar,
Esperar e querer muito
Mas não sei o quê ou quem

E – é tão tarde
E não tenho coragem para levar a mão ao puxador da porta
e sair de dentro de mim,
É tarde… muito tarde…
E neste esperar que vejo?
Cães abandonados, esfomeados.
Lá vai a pobre mulher, cheia de filhos, cheia de barriga até à boca
cheia de miséria até à ponta dos cabelos sujos e incertos
cheia com um mundo dentro dela,
e ela cheia do Mundo,
tão cheia, a barrotar!
Caminho e procuro nos rostos a minha imagem
E encontro-me em cada um que passa
Vejo-me e então;
- Sou um Mundo,
- Sou um velho senil,
- Sou uma criatura sem pai,
- Sou um pobre pedinte disforme,
- Sou a prostituta que passa provocante de cu a dar a dar,
- Sou a pequena aprendiza de cabeleireiro, a tremer de frio dentro da bata rota e de mãos gretadas,
- Sou a criada roliça para todo o serviço, a sonhar com a cidade,
- Sou aquela velha mirrada acocorada em qualquer esquina da dor,
- Sou um par de namorados no vão de uma escada,
- Sou aquela senhora toda empertigada de sabedoria que não passa cartão,
- E também a pobre idiota Amélinha batateira.
- Ah! é verdade!!!
- Sou também o homem da banha da cobra “O Sr. Machado” que tanto me encantou na minha meninice.
- Sou ainda a pobre rapariga tão pobre como analfabeta que não te entendeu quando dizias: - “Estou farto”.

Tudo segue igual, e eu a sonhar
e eu na lua mas com os pés na terra,
e eu a querar voar, a querer partir
mas cada vez mais presa ao barro que me moldou.
Cansada de corpo mas mais ainda d’alma
mas como o meu corpo e alma são um só, confundo
e por vezes não sei se é o corpo ou a alma que me dói.
… mas os outros também não sabem, e não sentem meu Amigo
e riem-se e não querem saber porque se riem,
e não querem saber porque choram.
Fazem alarde da riqueza que não tive, e não querem saber porquê!
Todos os dias morrem poetas, pobres e os outros…
E talvez sem saberem porquê;

Eles também estavam fartos, fartos das misérias deles e dos outros…
Mas eles, os POETAS, sabiam porquê!
Tinhas razão: - tudo segue igual, e u, continuo a amar,
Amar cada vez mais, procurando a poesia que perdi em ti.
Aquela poesia verdade sem a qual não posso viver;
Por isso asfixio nesta monotonia em que as pessoas fingem
que não sabem que estão fartas
“Mas estão fartas”!!!
E continuam a fingir que vivem;
E não sabem que estão irremediavelmente mortas.
… e eu continuo a coser, a lavar, a pontapear peúgas,
amar este, aquele, toda a gente,
tentando desesperadamente a poesia em mistura com a cozinha,
as batatas, as cebolas e o verde das couves, o verde esperança,
a querer acreditar em fadas “que tão mal me fadaram”
…. Mas tudo segue igual,
E eu tão confusa que não diferenço entre o corpo e alma,
a dor e o amor,
o riso e o choro,
a vida e a morte…

Tinhas razão Meu-Amigo-Tão-Longe
Quando dizias
“ESTOU FARTO!”.


Aurora Gaia

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