11 horas e 2 minutos
A vida é uma forma admirável. A cidade era luminosa, nítida, colorida, o céu alto e quase insolentemente azul. Nos jardins, as hidranjas e as azáleas estavam em flor. Sob as palmeiras, entre renques de arbustos, corriam crianças e casais de idosos passeavam vagarosamente debaixo de grandes guarda-sóis brancos. Dir-se-ia que fora sempre assim, os reflexos das árvores na água, os arcos de pedra de Megane-bashi, as carpas nadando lentamente nos canais, as ruas rumorosas de gente.
Mesmo em Urakami, as cicatrizes do martírio pareciam totalmente apagadas. A catedral fora reconstruída, o terminal de Unzen estava de novo apinhado e, no Parque da Paz, diante do monólito, ou sob as cerejeiras em flor, os turistas tiravam fotografias. No entanto, quem escutasse com atenção poderia ouvir ainda os gritos. E, se olhasse em volta, poderia ver as palmeiras, as cânforas, os dióspiros, arrancados pela raiz ou vergados, a arder, sobre o rio; os postes telefónicos derrubados numa confusão de fios; o chão coberto de cadáveres e de destroços; as estruturas fumegantes dos edifícios altos; os automóveis tombados de lado, esventrados; os pilares retorcidos do depósito de água de Keiho; a escola de Shiroyama em chamas; e vultos mudos saindo, como num sonho, do fumo e da poeira; fantasmas caminhando, perdidos, com o rosto coberto de sangue e de cinza; uma mulher de joelhos, chorando sobre o corpo negro de um bebé; outra, nua, a pele em chaga, o cabelo descomposto, sentada em silêncio, sem compreender; o torii do santuário de Sanno milagrosamente de pé…
No Museu da Bomba Atómica, em Hirano-machi, mostraram-me um poema, escrito por uma menina de nome Michiko, alguns dias depois da tragédia. Os versos falam da mãe e da irmã: «Debaixo da casa, a minha irmã chorava loucamente. / A trave não se movia. Até um soldado veio e partiu, dizendo: / “Nada a fazer! Nada a fazer!”
Vi alguém aproximar-se como uma flecha / Parecia uma mulher. / Estava nua, perdera a cor. / “Mamã!”. Sentir-me então livre de perigo. // O nosso vizinho tentou com todas as suas forças. / Mas a trave continuava sem ceder. / Tens de desisti!' Ninguém pode movê-la!” / E, assim falando, afastou-se, lamentando-nos. // As chamas inflamaram tudo. / O rosto da minha mãe empalideceu. / Baixou os olhos para a minha irmã / e esta levantou os olhos para ela. // Os olhos da minha mãe seguiram a trave. / Encostou-lhe o ombro direito / “Yo-ive-ho, yo-ive-ho!” / Tentou com todas as suas forças. // “Parte! Parte! Parte!” / As pernas da minha irmã libertaram-se. / Mas a minha mãe caiu / para não mais se levantar. // A minha mãe sucumbiu à bomba do meio-dia, / quando colhia beringelas. / O seu cabelo encurtou, vermelho e áspero / Vermelha e mole a sua pele // O ombro estava esfolado, / por ter libertado as pernas da m1nha irmã. / O sangue corria / da carne viva da minha mãe. // Depressa… Minha mãe começou a lutar / contra a dor e a agonia, / contra a dor e a agonia. / Nessa tarde deixou o mundo
e partiu para o Céu »
Manuel António Pina
in “Os Papéis de K.” (pág. 59 a 61)
lido por Agostinho Costa
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