quarta-feira, 19 de setembro de 2012

às vezes primavera

às vezes primavera
 
que não te digo que não tinha
esse tempo antes de abril
certas coisas que alegravam
os meus sonhos de criança
 
era fácil a alegria
simples infantil
tão fácil como a tristeza que corria
dos nossos montes para o mar
para longe
e do mar para outros montes
onde se esquece o olhar
 
era o tempo das partidas
à procura de outra fome
mais fácil de suportar
 
o mundo pequeno que eu era
corria solto pelos campos
vivia nas voltas que dava
solto da guita o pião
e  inventava bicicletas
da tampa de uma garrafa
sem rodas e sem pedais
fazendo das coisas simples
ilusões possíveis mastigáveis
e concretas
 
tudo o resto era somente
mais que tudo fantasia
dores do meu crescimento
num país por descobrir
provavelmente
inventar
 
corríamos como se fosse
todo o mundo a nossa estrada
e em carros de rolamentos
e em jogos de cabra cega
papagaios de papel
na ironia das mentiras
(ou seriam só metáforas)
enchíamos a esperança que havia
do pouco que o país tinha
sempre pouco quase nada
 
certezas?
certezas tinham as mães
(e todos os pais as calavam)
de encher navios de gente
para a boca faminta da guerra
(fundada em mil impérios
de glórias mais vis que a vaidade)
e guardavam junto no seu colo
um país silenciado
um choro baixinho
um fado
e gerações por cumprir
 
no seu colo mutilado
havia o desespero imenso
de um sonho por gritar
na promessa de que um dia
mais que um adeus sussurrado
fosse mesmo o tal regresso
o destino mais feliz
 
um soldado
um soldado em cada um
em cada filho que somos
marioneta de uma guerra sem sentido
que haveria de voltar
voltaria
sem cordas é certo
sem vida
 
neste país tão pequeno
de coração apertado
grande
grande a fome
o medo e o silêncio
grande
grande a história
sempre na volta da mesma fome
das partidas e regressos adiados
 
um país que se entretinha
por dizer
e sempre à espera
que se cumprisse a promessa
do regresso ao que não foi
do regresso da quimera
noite
noite dentro e nevoeiro
sem luz sem palavras
e pensamento amordaçado
 
cada um era o silêncio
a vítima
o grito mudo e lancinante
espancado e aturdido
e era também carrasco
no medo que alastra
como a peste e contamina
empobrece e assassina
 
era inverno
uma só estação dentro de nós
 
e o povo revoltou-se?
como poderia a espera podre
fazer florir aqui
outras flores de cor mais viva?
quem nos daria a senha
o pontapé primeiro
que acendesse em cada um
a revolta e a força
e a vontade de mudança?
 
como dar o salto
em direção ao abismo proclamado
em direção ao risco e à incerteza
negando a fé e o paraíso
a redenção dos pobres
em coisa e espírito
destes obedientes cordeiros
resignados
agradecidos
a um pai tirano
cruel e surdo?
 
a eles que acenderam essa chama
essa candeia fraca ainda
que iluminou caminhos
e apesar das sombras
lugares de medos novos
e de salteadores furtivos
nos ofereceu o norte
a eles eu dedico este poema
 
a eles agradeço
serem armas
outras formas de vencer
outras maneiras
de cantar
e proclamar a liberdade
 
por eles eu prometo agora e sempre
(que a memória de um povo
é esquecimento)
lembrar um dia
em cada dia que viver
que temos pouco ainda
que muito já perdemos
que tanto já gastámos
que tanto nem lembramos
mas somos hoje
sobretudo
liberdade!
 
Eduardo Leal

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