5.
Amei muitas cidades ao longo de
muitos e incertos anos. Em tardios quartos de hotel, indistintas estações de
Metro, ruas intermináveis, encontrei e perdi cidades. O meu coração está cheio
de reflexos de vidraças, de neves desfeitas, de rostos, de rumores; passaram
por mim brevemente mármores e jardins, céus e tempestades. Deixei em
aeroportos, em comboios, em bares, em urinóis, objectos obscuros e memórias indecifráveis.
Falei demais, faltei a encontros, comprei e não parei. E parti, algumas vezes
olhando, sem querer, para trás, mais pequeno e mais pobre do que quando
chegara.
Mas em nenhum outro lugar senão
neste poderia morrer. E nenhum outro, quando eu morrer, morrerá comigo.
6.
Cafés do Carmo, sórdidos subúrbios,
domingos, o último eléctrico da madrugada recolhendo pesadamente à Boavista; um
certo plátano de um certo jardim; dois ou três nomes, um de mulher (Marianne);
um quarto clandestino; um amigo preso, outro morto para sempre; o Verão; as
filhas crescendo fora de mim; uma mala com livros; uma cava cheia de homens e
de perguntas e uma noite interminável; um poema de amor; Eliot, Rilke, Eugénio
de Andrade; o vizinho enforcado na macieira; um naufrágio; dias de horror, de
aflição; insónias, lágrimas; um sítio onde havia uma casa; uma doença de pele,
uma traição; perdição, exaltação, melancolia; e fumo, e água, e pedra, e todas
as coisas que não posso dizer. Uma cidade é mais do que ruas, casas, pessoas. Provavelmente
todas as cidades o são; mas só esta me pertence deste modo.
Manuel
António Pina
in “Porto, Modo de Dizer”
lido
por Lourdes dos Anjos
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