quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O MEU TESTAMENTO


O MEU TESTAMENTO   

Resisti
ao que ergue uma casinha
                e diz: estou aqui bem.
Resisti ao que volta para casa
                e diz: Deus seja louvado.
Resisti
ao tapete persa das casas, aos andares
ao homenzinho do escritório
à firma de importação-exportação
à educação do Estado
ao imposto
e até a mim que vos narro.

Resisti
ao que saúda da tribuna, horas
                sem fim, aos desfiles
à beata que reparte
imagens de santos incenso e mirra
e até a mim que vos narro.

Resisti ainda a todos aqueles a quem chamam grandes
ao presidente do Supremo, resisti
às públicas música, às paradas
a todos os congressos que falabaratam
bebem cafés, congressistas, conselheiros
a todos os que escrevem arrazoados sobre a época
ao borralho do Inverno
aos votos de adulação, às imensas vénias
aos escribas servis para os seus sábios chefes.
Resisti aos serviços de estrangeiros e passaportes
às horríveis bandeiras dos Estados e à diplomacia
às fábricas de material de guerra
aos que chamam lirismo às palavras bonitas, aos cantos marciais
às canções delicodoces com os prantos
à assistência
ao vento
a todos os indiferentes e aos sábios
aos demais que fazem de vossos amigos
e até a mim, mesmo a mim que vos narro
                   resisti.
Poderemos então talvez seguros seguir para a
                   Liberdade

PS
           
O meu testamento antes de ser lido
 – como foi lido -
era um quente cavalo inteiro.
Antes de ser lido
não os herdeiros que esperavam
mas uns usurpadores pisaram o campo.

O meu testamento para ti e para os
anos foi atafulhado nos armários do tempo
por escribas, manhosos, notários.

Mudaram frases importantes
dobrados sobre ele temerosos durante horas
desapareceram as partes com os rios
o novo rumor nos bosques
o vento mataram-no -
percebi por fim o que perdi
            quem é que afoga.

E tu portanto
ergues-te assim mudo com tantas observações
sobre a voz
sobre o alimento
sobre o cavalo
sobre a casa
ficas desesperadamente mudo como morto:

Estropiada liberdade voltam a prometer-te.

Mikhális Katsarós — Grécia (1919 — 1988)
Poeta marcado pela tragédia da ocupação alemã e pela guerra civil que se lhe seguiu.
Este poema "O meu testamento" foi publicado pela primeira vez numa revista de esquerda, tendo sido censurado pela direcção da mesma (para evitar problemas com a censura). Daí o "post scriptum" amargo que o poeta escreveu e causou profunda impressão na sua geração.
               
 lido por Eduardo Roseira

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