quinta-feira, 8 de março de 2012

PARA TI

PARA TI

Ouve-me por favor
Quero falar-te do meu Porto
Do Porto que eu vivi
Porto Velho e sujo! lembras-te daquela menina
Pobre e velha sem infância
Menina triste que sonhando
Percorria as tuas ruas e jardins
Buscando nas flores o amor
Acaso te lembras dessa menina
Rica em tristeza pobre em alegria

Jardim da Cordoaria
Jardim das criadas e magalas
Dos rufias e velhos senis
Prostitutas e maricas
Onde nós as pobres crianças pobres
Procurávamos flores e brincávamos
Ao pilha-galinha-choca
Ao Ana-Ina-Não
Ficas tu-eu-não (Mas eu ficava)
Ao bom barqueiro – deixa-me passar
Tenho-filhos-pequeninos-não-os-posso-criar…
… mas eu criava sonhos, sonhos tão grandes
tão grandes que se tornavam pesadelos…
… E a sonhar fugia para o lago, e com os patos
Repartia o meu pão; Cantava e chorava
Chorava as penas dos patos, as minhas penas.

Jardim da Cordoaria
Jardim dos meninos sem jardins
Dos meninos velhos sem infância
Sem janelas, sem sol, sem estrelas
Ao ver os pássaros voar chorava
Chorava por não poder voar
Ir pelo céu adentro
Ir até às estrelas
Ir onde houvesse jardins, com crianças
“mas crianças mesmo”
Ir não sei para onde, não sei…
O importante era ir
                        Ir e não fica ali esquecida.

Velho coreto aonde a banda tocava música
Música que eu não entendia
Música ao longe e sonhava
Sonhava uma gaiola sem grades
Quarto sem paredes, sem teto
Sonhava com o sol e as estrelas
Com a noite que eu tanto amava
Tu sabes o que é viver neste Porto?
Não no teumas no Meu
Com as suas noites cheias de sombras
e de histórias nas sombras.

Jardim do Soldado Desconhecido
Sempre te respeitei e temi
Hirto tão frio, tinha medo que acordasses
E me transformasse em estátua
Que frio eu sentia então:
… E o passarinho que lá encontrei
Cuidei dele com amor… pobrezinho
O meu amor era frio e não o aqueceu…
Chorei por ele “e por mim”
Teve por caixão, uma velha caixa de sapatos
dos meus velhos sapatos de ver a Deus.
 
Havia uma grande loja “O Chiado” lembras-te?
Fitas de mil cores, tanta coisa linda:
Fitas de mil cores… mas só para ver
Ver como te vejo a ti “na vitrine”
De  mil cores me vestia em pensamento
… Que outra coisa não podia ser
“Ouve sempre uma vitrine”

E a Praça dos Leões
Sempre cheia de estudantes.
Leões alados, onde estão as vossas asas
As vossas capas negras
Eles eram a força, o futuro, o saber
E saber eu as minhas limitações
Ai esta cobardia de anda saber
Porquê toda a ignorância
Se alojou em mim, porque foi?
e a casa dos botões, tanto brilha.
Meu senhor dez tostões de continhas de enfiar
… esterno, estremarei sentada numa almofada
a enfiar continhas d’ouro… solta cá  minha enfasada

O Bazar dos Três Vinténs…
“O burro vai à feira por três vinténs”
Maravilhoso mundo infantil
Das crianças-Bem-na-vida
Das crianças-família
Mas Não do meu mundo
Não do Porto que eu vivi
Não daqueles olhos tristes
Conformados ou revoltados, não sei
Lembras-te daquele narizito
Colado aos vidros das montras
“Por ironia contínuo de nariz colado
Achatado aos vidros da Montra da Vida”
Que chato, já o sinto chato
e é chato ver a vida correr além do vidro…

Igrejas do Carmo, São Bento, Congregados
Onde mulheres gastas
Cor das pedras, vendiam violetas
Crianças velhas por viver
Vendiam atacadores, pentes,
Esticadores prós colarinhos – quem quer?
Com seus pregões, feitos gemidos
Quem quer atacadores
                        Quem quer, quem quer…
                        “E ninguém queria, ninguém.

Palácio de Cristal
Ir lá era dia de festa
ver os cisnes no lago
Flores e os animais “mas presos como eu”
Comer língua da sogra, barquilhos
Um sorvete de dois tostões
“Do feitio do meu sonho, um barco”
A fava rica, pirolitos e com a bolinha
Jogava o berlinde, era bom…

Mas o mais difícil
É falar-te da minha rua
Não sei porquê; por vergonha, por pudor
Por receio de te chocar e perder
Mas porque minto…?
Talvez saiba
Tu não me reconheces lá?
Na minha rua prisão
Rua feia, rua escura
Rua de ventos e frio
Rua de ódios de raiva funda,
Calada, calcada dentro de mim
Rua sem calor nas almas feitas de pedras
Rua das vidas mal vividas
Vazias, despidas, dispersas
Vês-me lá? – Olha-me bem de frente
Reconheces-me? Só e pequenina
Feia e fria, pobre e velha
                        Diz-me – reconheces-me?

A minha rua
Rua suja, podre
Rua de pouca gente boa sem história
Rua sempre molhada, escorregadia
Rua da cadeia, das cadeias sem elos
que nos ligam à vida
Rua dos amantes sem amor
Do amor por tabela
Dos cães sem dono e sem coleira
Da miséria e podridão
Dos mendigos esperando as sopas
Rua das esperas, nas esquinas sombrias

Sou o que resta dessa rua sem sol
Da casa sem janelas, sem nada…
Vergonha de mim?
Ai!... Esta raiva calada, calcada toda uma vida
Tanta raiva que sufoca Meu Deus
Tanta raiva que sinto a baba a correr
Como a um cão raivoso que é preciso abater
Este espasmo, esta dor: é a raiva

… A minha rua é assim.
                        Som o resto da minha rua.


Aurora Gaia

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