terça-feira, 6 de dezembro de 2011

ELEGIA 1


ELEGIA 1

Queria que o amor se pudesse repartir
Como o pão alentejano às fatias sobre a mesa
queria ter um rumo e pelo mar vê-lo seguir
até esses países onde a guerra está acesa.

Queria que o amor fosse dado sem receio
e que as suas luzes alegrassem as paisagens
agora que estou velho já nada mais anseio
que a paz do mundo se conquiste sem paragens

Deste fim de vida, desta térrea coisa
queria acrescentar um sorriso ao universo
porque é nos seus ombros que ainda poisa
uma esperança. E nada mais vos peço…
              
Tivéssemos sabido em tempo exacto
a proporcional limitação do sopro
e o vento que tempera o movimento
trouxe ao meu livro o necessário impacto.

Foi quando… ah! Sim… foi quando
transfigurado o lume bruxuleou
e num tremeluzir leve nos foi dando
a morna suavidade que deixou.

Assim cresceram plantas e arbustos
e tudo o que era bom era sem fruto
quando as flores caíam tinha-se cumprido
o ciclo da vida em seu reduto.

Neste lugar da vida
onde enfiei o espaço
penso, faço e sonho
na minha obra adormecida.

Mas da cor com que pinto
aos contornos diluídos
desiludo-me se minto
e com a verdade me indulto.

É por isso que abro sulcos na terra
onde planto os feijões e as ervilhas
e me racho na manobra da enxada
para colher, mais tarde, as maravilhas.

Desci com minha alma nas mãos
às entranhas da Terra, aos abismos da cor
fui perguntar se havia poetas no futuro
se os jovens estavam inquietos e ardiam
nas inefáveis procuras de absoluto.

Desci com minha alma nas mãos
por entre ruínas, ravinas e ruídos
os motores laceravam a escuridão do mundo
ninguém tinha olhos, nem boca, nem ouvidos
eram todos de alumínio e fibra de vidro
de jactância e soberba em cada fala
e menores que menores sem saber
porque se tinham tornado diferentes.

Nem a música soava no coreto
nem a banda nem as cores da paleta
as mais brilhantes, sonoras, eram pretas
e o frango continuava no espeto…

Passei lá mesmo à porta, não entrei
voltei outra vez, mas dessa, fiz caretas
tantas vezes lá passo porque errei
- que sorte! – vim abrir só as gavetas

Foi quando me exigiram passaporte
para sair do coreto pelas portas
com bandas desenhadas ao serrote
e os cabelos a caírem pelas costas

Os humanos agora são recursos
e os livros são meios didácticos
o auditor é aquele que não houve
e o som não é um som, é o estilo

Os locutores são comunicantes, não são ursos
os enfermeiros são apenas profilácticos
o político não pensa, foi às couves
e a esposa dele no mercado tem um “grilo”

O comboio assenta em colcha de ar
os bebés são deixados à televisão
a Misericórdia faz negócios de milhão
e o poeta é obrigado a emigrar

Em refluxos de orgânicas fontes
e processos de ondulação consciente
vão as ancas balançando nos ritmos
das utentes

No verão que as condiciona desde o clima
à extensão das pérfidas origens
vão as nádegas crucificando impulsos
e vertigens

Pelo Sol até à Lua e aos clamores
os instintos inventando-se tremores
ficam mais vivos, reflexos, portáteis

Nada nos falta para sermos bichos
a não ser naturalmente e sem caprichos
vivermos, por fim, em datas memoráveis.

O serviço de amor e o de cristal d’ arques
são ambos frágeis na sua aplicação
quando uma peça de cristal se parte
deixa o serviço de amor em má posição.

Tudo o que é duradoiro não tem surpresa
se ninguém lhe mexer o amor definha
por isso é melhor deitá-lo a boa mesa
que é onde o cristal d’ arques se adivinha.

Os dois serviços encontrando-se enfim
na posição ideal em que podem ser vistos…
o cristal d’ arques a brilhar em reflexos mistos
e o amor, feliz, dum tal serviço assim…

Fernando Morais
in "O Poeta Escondido"

Sem comentários:

Enviar um comentário