sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

PALAVRA


PALAVRA

Espero pela Palavra que tenha a emoção e o saber
espero por ela tão fluida e temível
e só depois escreverei.
Espero pelo dia em que me apareça
nua e tangente
em toda a sua corrosiva simplicidade
em toda a sua grandeza cósmica
como a revelação da Vida e do Prazer
como um segundo nascimento do Pessoa.

Espero por essa palavra
que faz todas as poesias, todas as canções,
parteira do mundo novo.

Recuso-me ao acto de escrever
assumo o silêncio continuado
enquanto a palavra não vier…
Só quero que a palavra apareça
incendiada da superfície solar
magnética e ofuscante
para eu a beber e devolver ao mundo
nesse minuto derradeiro
da existência de qualquer poeta
quando as coisas param no tempo
e as asas deixam de bater.

Será que essa palavra virá um dia?
e descerá sobre o meu telhado?
E depois escorrerá como um pingo de licor
por entre as telhas, até me cair na mesa
e então tocará nas minhas mãos ansiosas
e os meus papeis parados, espectantes,
que se encherão de luz em fambroesas
e as aves rirão, enfim, perdidas de alegria
e tudo ficará finalmente ornamentado
da grande, da bela, da imensa poesia?

Debaixo deste tecto da Terra
veio abrigar-se o meu ser universal
aqui moro em lugar tão pequeno
tão redondo, tão sóbrio, tão igual.

Por que forças de Mãe como a que tive
aqui vim parar?
Se a Terra me gerou neste canto do universo
em que outro lugar, depois da morte física,
irei morar?

Somos nós – sim – somos nós os triturados
pela maquinaria sofisticada do actual
somos só nós
que vemos por trás das casas, dos vídeos, dos campos,
das torres obscenas erguidas frente à nuvem,
somos só nós que vemos qual outra face da morte…
o lado certo do existir…

Aos outros que nos empregam, nos alimentam, nos sorriem,
àqueles que nos ombreiam, nos ensombram, nos entretêm
a esses…
todo o nosso sentir lhes escapa.
e há dois mil anos que isto é assim…

Hoje, porém, saia, um grito de revolta
que abale as certezas, as proeminências, as carteiras.
saia um imenso grito sussurrado, uníssono
como o vento das águias ao passar – e diga –
que temos vida nova, outro sentir.

Pois somos a palavra e o telhado do Mundo
a escrita que envolve vontades e saberes
e o poder que temos até nos dá direito
a sermos os últimos da escala social.

Qual governo, qual político, qual homem
disse, um dia, um só minuto que fosse,
- BENVINDO – ao poeta?
Não! não existiu sequer Neruda para o afirmar…
o Poeta morreu ao entrar no Governo!

À feitura e ao tropeço
à touca do louco longamente internado
à pluralidade que estremeço
à irreverência que confesso
ao capacete de guerra tolamente enfiado
a isto de escrever em que me estafo
e ao facto da solidão
ser bem um facto
a tudo isto me meço…

Ao gosto de planar
por sobre vagas de problemas
ao amor do Sol feito em poemas
e às pequenas coisas bem pequenas
a tudo isto me meço…

Ao grão de areia, insigne, rutilante
e à voz do adeus que fica
enrouquecida porque agonizante
às escadinhas de Alfama
que inebriado desço
inchado da beleza
de que nunca me canso…
e a tudo aquilo ínfimo
em que desapareço,
à consumista sociedade que vive
no meu maxi-espanto
a tudo isto me meço…

Aos que dizem do bem como afirmam do mal
e às raivas, intrigas, do eterno animal
e à flor pousada no rebordo da brisa
e à espuma que a beija, tão de leve, indecisa
a tudo isto me meço…

Aos pregões do meu povo
que se vende ao poder
cujo poder é torvo
às ilusões antigas de que não me arrependo
e de que ainda padeço
a tudo isto me meço…

A toda a angústia dos namoros traídos
e ao ano dois mil que almejo mas temo
às mais gostosas sensações da carne
em que me realizo e me comparo ao demo
sendo anjo puríssimo à entrada do inferno…
e às árvores marinhas com quem me pereço
a tudo isto me meço…

Deixai-me, pois, viver
no dia a dia incerto
que por muito que custe
eu já paguei o preço…

                     Fernando Morais
in "O Poeta Escondido"

Sem comentários:

Enviar um comentário