terça-feira, 28 de dezembro de 2010

DOCE SEIVA

José González Collado
DOCE SEIVA

A farrapeira pousou a giga, cortou a trança
E fez-se emigrante em terras de França.
A galinheira já não apregoa na cidade.
Nem vende galos com esporões que dizem a sua idade
O peixe não acorda nas canastras vadias
É tratado por “doutor” nas bancas das peixarias.
O ardina deixou a sua almofada feita de jornais
Tomou de passagem um quiosque com bugigangas e postais
E até o carvoeiro deu o burro a um circo sem animais.
O homem das gravatas é hoje um técnico bem falante
E perdeu o estatuto de vendedor ambulante.
O aguadeiro viu a nascente d’água enterrada no alcatrão
E abriu um “snack” com “finos” e camarão.
A hortaliceira desfez a horta e vendeu-a a “talhões”
E a lavadeira viu o ribeiro morrer com esgotos de habitações.
A cidade cortou as veias onde a seiva corria.
Tão doce seiva! Puro sangue com que vivia
Perdeu-se esta pluralidade de cores e sons
Esqueceram-se outros tempos.
Tão azedos mas tão bons!

Lourdes dos Anjos
in "Nobre Povo"

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