José González Collado
É do seu tempo? (III)A figura ímpar da Dr.ª Adelaide Estrada com os seus chapéus de rendinha sobre o rosto, abrindo de par em par as portas da sua casa ao companheiro de ideias, general Humberto Delgado, para lhe oferecer um enorme ramo de rosas vermelhas, sob o olhar atento e quase moribundo de alguns “pides”, disfarçados de passageiros do eléctrico, ou simples transeuntes?
O velho Mendes alfaiate e dono da papelaria Invicta, atrevido e mulherengo, mas indiscutível oposicionista ao regime de Oliveira Salazar?
O castiço senhor Amadeu-bem trajado e bem falante, ateu, provocador de polícias fardados e saloios – de lenço e gravata vermelho vivo, em dias que convinha assinalar?
O senhor Horácio, funcionário do “Jornal de Notícias”, que fazia da sua janela um posto de observação por excelência (a partir das 14horas), boina basca, com a internacional socialista como músico de fundo, em dia de primeiro de Maio, levantando a mão em cumprimento fino e cordial a quem passava?
O senhor Ernesto, alfaiate de gente endinheirada, que se reunia em casa dos meus pais com o senhor Eusébio, o pintor de cartazes do Coliseu do Porto, o Quintela sucateiro, vivaço e animador do grupo, o Dr. Elísio de Melo, advogado e conhecedor de grandes segredos políticos, para jogarem à sueca, ouvir a BBC e deliciarem-se com os “comeres” que a minha mãe fazia?
O senhor Alberto Barbosa, homem de teres e haveres, que cultivava amores extra-conjugais e era a delícia das más-línguas?
O senhor Luís da leiteira, onde se ia comprar o leite que chegava, pela madrugada, em enormes canados de latão, vindo da Calçada e Valpedre, ricas terras de Penafiel?
O senhor Amadeu “esgazeado” da Grande Guerra, que vivia na ilha que tomou o seu nome, e passava o tempo entrando e saindo dos carros eléctricos, porque lhe fora dispensado o pagamento de bilhete?
O senhor Armando Picheleiro, o Espanhol que reunia em sua casa gente mais ou menos jovem para simpáticas tertúlias onde era Senhor e Rei, pai de três lindas catraias uma das quais a Sara atingiu invejável patamar, galo vaidoso e atrevido!?
A minha rua era familiar e ternurenta, mas também revolucionária e, por isso, difícil de roer.
Aqui vivia-se Abril sem dia marcado. Cresci respeitando a liberdade e valorizando o trabalho.
Passaram-se cinquenta anos!
A saudade já me enche a alma.
A minha rua mudou, mas não melhorou.
Lourdes dos Anjos
in "Nobre Povo"
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