quarta-feira, 6 de abril de 2011

CANÇÃO DO ZÉ DE GAIA

CANÇÃO DO ZÉ DE GAIA

Eu nasci à beira-rio
e fiz parte da gandaia,
andei à chuva e ao frio,
descalço, roto, vadio.
E chamam-me o Zé de Gaia.

Fui homem sem ser menino,
cresci depressa de mais.
Foi meu leite o vinho fino
que bebia pelo cais.

No rio fui navegante
remando contra a maré
sob os olhos do Infante,
ali, em frente da Sé.

Marinheiro, vagabundo,
em barcas de papelão
navegava pelo mundo
da minha própria ilusão.

Fui pescador na Afurada,
embalou-me uma traineira,
joguei ao peão na estrada,
nos passeios à sameira.

Eu nasci à beira-rio
e fiz parte da gandaia,
andei à chuva e ao frio,
descalço, roto, vadio.
E chamam-me o Zé de Gaia.

Fui intérprete, fui guia
de turistas, marinheiros,
para as caves conduzia
os sedentos estrangeiros.

Ai!, a fome explica tudo
se nos corta a canivete:
“ dê mussiu uane escudo!
Ei, mister! Um buca de brete!”

Fui gajo de romarias,
de matines no Odeon,
fui amante das folias,
dançarino, D. João.

Vivi sempre intensamente
as horas que um dia tem,
e as da noite, igualmente,
vivi com fúria também.

Nas caves tenho a riqueza
dum vinho que é o meu tesouro.
Nas casas tenho a pobreza
da morte do Rio Douro,
rio onde hoje já não vêm
nem arrastões, nem cargueiros,
e os rabelos que se vêem
são postais para estrangeiros

Só os esgotos persistem
alimentando as taínhas.
Os sáveis já não existem
e fugiram as toninhas.

Eu nasci à beira-rio
e fiz parte da gandaia,
andei à chuva e ao frio,
descalço, roto, vadio.
E chamam-me o Zé de Gaia.

Resta a memória inda viva
do velho Luís Pescada,
figura serena, altiva,
por todos nós respeitada,
com a cabeça gigante
do velho santo barqueiro,
tal como nós, mareante,
na nossa festa, em Janeiro.

Pouco a pouco vão morrendo
na beira-rio as tabernas
e, em seu lugar, vão nascendo
as taberninhas modernas.
Até mesmo o Brasileiro
é já hoje uma saudade.
Resta um ou outro tasqueiro
qu’inda resiste à idade.

Há pubs, casas de fados,
há snacks, restaurantes,
há cafés sofisticados,
esplanadas elegantes.

No Areínho resta a praia
e na Serra, um miradouro.
Do Castelo resta Gaia
e a memória do rei Mouro.

Resta a ermida vazia
do qu’rido Senhor d’Além
onde havia a romaria
hoje esquecida, também.

E as barcas embandeiradas
dos passeios domingueiros?
Jazem hoje abandonadas
pelos velhos estaleiros.

Restam lendas, tradições,
de verdade e de mentira,
restam sonhos, ilusões,
porque esses ninguém nos tira.

Eu nasci à beira-rio
e fiz parte da gandaia,
andei à chuva e ao frio,
descalço, roto, vadio.
E chamam-me o Zé de Gaia.

Mas c’o esta força que temos
e que nos vem das entranhas,
se o quisermos, bem podemos
mover tudo, até montanhas.
Porque inda resta na gente
força que chegue, afinal,
para gerar novamente
dentro de nós, Portugal.

Rio Douro, se ao nascer
foste o primeiro que eu vi
e me ensinaste a viver,
permite-me que ao morrer
eu morra olhando p’ra ti.

Eu nasci à beira-rio
e fiz parte da gandaia,
andei à chuva e ao frio,
descalço, roto, vadio.
E chamam-me o Zé de Gaia.
                         Fernando Peixoto
                       Lido por Eduardo Roseira

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