METADE
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que grito
Mas a outra metade é o silêncio
Que a música que ouço ao longe
Seja linda, ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo
Seja para sempre amada
Mesmo que distante
Porque a metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece
Nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa
Que resta a um homem
Inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo
Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma
E na paz que eu mereço
E que essa tensão
Que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
Mas a outra metade é um vulcão
Que o medo da solidão se afaste
E que o convívio comigo mesmo
Se torne ao menos suportável
Que o espelho reflicta
Em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Porque metade de mim
É a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei
Que não seja preciso
Mais do que uma simples alegria
Para me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio
Me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade
Para fazê-lo florescer
Porque metade de mim é plateia
E a outra metade é canção
E que a minha loucura
Seja perdoada
Porque metade de mim
É amor
E a outra metade
Também
Ferreira Gullar
80 anos
Prémios Camões 2010
lido por Leonor Reis e Lourdes dos Anjos
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