ANA LÚCIA
Ana Lúcia, a dos olhos de gazela,
a que cheirava a sândalo, a baunilha,
e tinha a cor gostosa da canela
da sua verde e perfumada ilha;
a que nascera duma avó mestiça
e dum ventre moreno de crioula,
a que tinha, na graça assustadiça,
movimentos de antílope e de rola;
Ana Lúcia, a do corpo de bambú,
a selvagem dos olhos inocentes,
a que apenas tapava o seio nú
com fieiras de contas e sementes.
Ana Lúcia, a que fora baptizada
por um severo e ardente missionário;
a que rezava o terço, ajoelhada,
chupando as velhas contas do rosário;
a que fora arrancada às verdes Ilhas,
morta a mãe que a trouxera nos seus flancos
e atravessara os mares das Antilhas
para morar com seus parentes brancos;
a que fora roubada à sua raça
ao seu país de sol abrasador,
para os entontecer com a sua graça
de serpente, de pássaro e de flor;
Ana Lúcia, a que tinha cem colares
e cem panos de seda, cem pulseiras;
a que dormia à sombra dos palmares
sob os leques maciços das palmeiras;
a que andava de noite, sem ruído
com um felino a deslizar na areia,
anda agora exilada num vestido,
presa à cintura em barbas de baleia.
Ana Lúcia, a dos finos tornozelos,
a orgulhosa gazela dos planaltos,
… Ana Lúcia, domados os cabelos,
prisioneiros os pés dos tacões altos,
a virgem das florestas tropicais,
a venenosa cândida papoula,
a das longas fieiras de corais
a dos floridos panos de crioula,
a que nos troncos subia forte e ágil
para colher os cocos e as papais
… dócil, inútil bonequinha, frágil
prisioneira de rendas e cambraias;
a que sabia a forma, o gosto, a cor
de cada umbela de cada raiz,
… Ana Lúcia sentada ao bastidor,
bordando falsas flores a matiz.
A que entendia os pássaros das valas
e amava cada trilo, cada harpejo,
Ana Lúcia, ao piano lendo escalas
e soletrando notas de solfejo;
a que nunca temera o sol violento
a que tinha nas veias sangue e brasas,
… pobre Ana Lúcia, colibri friorento,
sem forças, quase, para abrir as asas,
a que buscava em cada melodia
as melodiosas noites tropicais,
… morrendo de silêncio e nostalgia,
ave das Ilhas que não canta mais.
E, quando para a última viagem,
partiu, com seus anéis, suas anilhas,
a que cheirava a sândalo e a canela,
tinha nos bolsos mortos a paisagem
das suas verdes e distantes Ilhas.
Ana Lúcia, a dos olhos de gazela,
Ana Lúcia, creoula das Antilhas.
Fernanda de Castro
declamado por Fernanda Cardoso
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