ANGÚSTIA
Encontrei uma criança na rua.
Uma criança suja,
coberta de óleo,
de olhos encovados
e cabelo desgrenhado.
Vestia-se de trapos de passado,
e nos pés levava apenas insustento.
Falou-me,
mas não a quis ouvir.
Eventualmente,
alguém se preocuparia
e se encarregaria de lhe dar atenção,
ou a colocaria no respectivo sítio.
Falou-se novamente,
e novamente me recusei a ouvi-la.
Empreendeu todas as manobras
de possível espalhafato,
gritando-me,
enfiando-me agulhas nos calcanhares,
puxando-me os pelos,
beliscando-me a barriga,
encostando-se a mim,
para que a sentisse.
Virei as costas.
Agarrou-me à minha perna
e não me largou mais.
Cada vez mais suja,
cada vez mais fria,
cada vez maior,
fui-a deixando ficar.
Chamei-lhe Angústia.
Agora segue-me
para onde quer que vá,
agarrada ao meu casaco,
desalinhando-me
e fazendo-me tropeçar.
Agora,
todas as noites se deita comigo,
e, todas as noites,
com o mesmo quente sadismo,
durante horas a fio me fere,
me destrói, me desfaz,
me arranca todos os membros
voltando a coser-mos depois
apenas para os poder arrancar de novo.
Quero esbofeteá-la,
quero matá-la,
afogá-la na banheira,
cobri-la de veneno e atear-lhe o fogo depois.
Quero dizer-lhe que se cale,
que não é bem-vinda,
que nem é merecedora de um nome,
que me arrependo de não ter mudado de rumo
antes de me cruzar com ela pela primeira vez.
Mas, ao fim do dia,
já não é só ela que se deita ao meu lado.
Também eu me deito ao lado dela,
na habituação de quem a quer abraçar,
com doce raiva,
leve desespero
doloroso carinho.
E a minha cama,
Já não a conheço de outra forma,
já não tem espaço só para mim.
Leonor Camarinho Figueiredo
in “JUP – Jornal Universitário do Porto”, Março de 2011
lido por Eduardo Roseira
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